sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Joana III

E lá sobe ela ao palco. Em todas as sessões faz questão de falar, conhece todos os antigos e todos os novos. A sala é enorme, plana e alta com o palco ao fundo lembrando um triste salão de baile. O Hotel cedeu a sala ao grupo que sendo uma organização já com muito peso necessitava de um espaço amplo e acolhedor quanto baste. As cadeiras são daquelas de escola e ocupam grande parte do salão divididas em duas partes, do lado direito estão os com mais de um ano, do lado esquerdo estão os novatos. Joana é do direito. Ao lado da porta envidraçada de entrada está uma mesa corrida, recheada de bolos e café, para o final. Tosse, ouve-se muita tosse. Veio aqui numa noite de mágoa, entregar o corpo , e quando saiu viu o anúncio. Não tens vergonha? De mentir a todas aquelas pessoas? Gritam-lhe os próximos. Ela não tem. Vive as sessões numa representação quase senil, usando fantasias que incuba na sua cabeça durante o resto dos dias e depois, quando se vê no prazer proibido, ri sozinha. As pessoas abrem-se contigo e tu não retribuis, usas as pessoas num momento tão frágil. Joana sabe disso. Joana não quer saber. É um prazer que a leva mais alto, quase como se enrolasse em falsas lágrimas, e naquele momento fosse uma cabeça mais crua. Olha para a sua frente, não reconhece um rosto, Logo descobres quem é, na calada, o que sobra é família, o Ernesto, a Rute, o seu filho Jaime, a outra Joana, a Sónia, a Rute, por aí, até um número grande. Raspa ao de leve no microfone, a peça vai começar. Tosse.
- Boa noite a todos, o meu nome é Joana e não fumo há três anos.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Maria III

Estava à janela. Corriam gotas reflectindo as montras distorcidas e enevoadas pelo consumo. A cor era de um cinzento azulado, de dia acabado, de horas metalizadas e pensamentos vagos. Vejo-me no reflexo do vidro a olhar para longe, mas a ter de olhar para um sítio que não entendo. Onde estou? Olho para o lado, uma mãe com uma criança ao colo que chora, que grita por mais. Como não ouvia nada? A seu lado está outra mãe, e outra, e outra. Imaculadas e sofridas a abanar os seus rebentos, dizendo em surdina para se calarem. Levanto-me e todo o autocarro chora e se povoa de branco. Passo e entro no corredor do meio, cada vez mais rápido a furar as ruas, danço de ferro em ferro e olho para elas que nem me sentem. Vejo a condutora lá ao fundo,noiva de alguém, soltando leves nuvens de fumo, tento agarrar-me e dar consistência as pernas. Só então vejo que estou também de branco, vestido comprido, com um decote sublime e uns sapatos de salto alto a condizer, em pele. Toco no cabelo, está arranjado e apanhado com uns enfeites que apalpo mas não decifro. Lá de fora vem o chiar do travões e o meu leve corpo é arrastado até ao fundo, sinto a cara a rasgar o chão e a cabeça a estalar. Debruço-me quando pára e ninguém sentiu, mas já ninguém chora. Um trilho de sangue á minha passagem marca a marcha silenciosa até à frente. O meu vestido pinta-se de vermelho e sinto a cara molhada de dor, já não estou bonita. Toco no ombro da condutora e ela vira-se. Inês?
– Tu sais aqui Maria.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

Pedro III

A minha preferida?
É a cadeira de baloiço.
Embala-me as alegrias.


Está parado do outro lado da estrada. Chove sem pingar, apenas sente a humidade entrar-lhe respiração adentro, condensando a inspiração interior. Tem o capuz do casaco enfiado, escondido dele mesmo, e caçando deliciosamente a sua presa. A noite já é ela mesma, e o restaurante já se encerra, vão levando as cadeiras, uma a uma para dentro. A vontade de fumar já lateja encarnando na ponta dos dedos. Há semanas que olha para aquelas cadeiras, que as namora sem cessar e que vê uma delas, indefesa, na sua vasta colecção. É de madeira, clara, com os nós das pernas bem vincados e tampo irregular. As costas são armadas por quatro troncos cilíndricos, finos, lisos, que dão uma sobriedade outonal à cadeira. Está na hora, o empregado agarra na penúltima, levanta-a e arrasta-se para o interior. Está na hora Pedro. Passa a estrada fugindo aos carros, entra na outra margem, e que nem felino faminto debruça-se sobre o gradeamento que separa a esplanada do resto da rua, sente o toque da madeira, pega no seu alvo e começa a correr. Ouve os gritos desesperados do empregado, cada vez mais ecos á medida que se afasta a passos largos de corrida, que nem louco, de cadeira abraçada, colada ao peito. É minha. O coração grita. Corre sem travar , até chegar à sala, à sua toca. Entra e desce para o parque, olha a ver se ninguém o vê, nunca ninguém o vê, corre mais um pouco e chega à sala abandonada, ao seu museu. Pela primeira vez pousa a cadeira e tira do bolso um molho de chaves, deixando morrer uma a uma até nascer a certa e espetá-la na porta. Ainda sente o nervoso a escorrer-lhe na testa. Já está tudo bem, bem vinda ao meu mundo.

João III

Abre a porta devagar varrendo com a vista o negro que valsa na entrada, de mão dada com um pequeno ranger, lembrando o antigamente. Pressiona o interruptor e sonha com o dia em que baterá palmas para se fazer luz. Ridículo. Tira o casaco de ganga e solta-o no sofá maior, não ouve nada, estranho. A sala cheira a claustrofobia, falta luz ali, a televisão adormecida, os sofás encardidos. – Tio!Está aí em cima? – grita para as escadas sem cimo, avizinhando o sucedido. Sobe, Tio, tio! Abre ambos os quartos, naquele, cama feita, guarda-roupa aberto, sem roupa. Foda-se. Desce sem pressa, ele não vai fugir. Do frigorifico sai um pacote de leite bebido freneticamente, fugindo pelo canto do lábio. Pega no casaco e sai de casa, a porta fecha poucos minutos depois de se ter aberto e geme de novo. Deixa para trás uma casa pequena, colada a tantas outras rasteiras que se enfaixam rua fora, e já é noite. Anda com passos certos até ao autocarro. Sobe para aquele limbo, e deixa-se estar numa das cadeiras almofadadas lá do fundo. Ouve o ar das portas a fechar e balança para a frente, já não é novo neste caminho. Todos os meses o seu tio António foge de casa, uma duas vezes, guarda tudo é que é seu, põe a sua camisa mais bonita, em tons de rosa, e sai porta fora (aquela que range). A primeira vez foi o fim do mundo para João, a única pessoa que ele quer bem tinha desaparecido, abriu a cidade, correu as montas, os passeios, suou, foi à polícia, até que alguém viu um velho, numa paragem de autocarro, onde já lá não passa nada nem ninguém, sozinho há horas, com as malas nos pés. Isto foi a primeira, as outras foi ver e correr para o céu, já sabia onde. Como agora que balança neste pára arranca, nesta apatia que se vive nas cadeiras e no motorista, robô que se encontra ao fundo rodando o enorme volante a passo lento, a passo dos dias que morrem aqui dentro com o mundo a viver lá fora. Está a chegar, carrega no botão de aviso e levanta-se percorrendo o vazio até à porta. Algum frio cose o corpo grande de João, em tempos atleta, hoje apenas cansado. Sublinha-se por uns quantos becos e ruelas, sem olhar para ninguém, até chegar ao velho repouso. A paragem é vulgar, um banco, um tecto, vidros laterais pintados com riscos urbanos, e uma placa de metal a indicar o 78.
– Então tio, outra vez...vamos para casa, já lhe disse que não passa aqui nem o 78 nem autocarro nenhum, venha lá comigo!
- Deixa-me em paz Ricardo, não te metas na minha vida – diz com os olhos molhados e o pouco cabelo bem penteado. Tem um casaco escuro fazendo par com as calças, da camisa rosa apenas o colarinho, as mãos no colo agarrando na carteira e os pés para trás, cruzados. Sempre chamou João de Ricardo. Nunca o corrigiu, nunca disse a verdade, e neste momento é tarde. O meu nome é João! Engoliu estas palavras e depois arrastou-se, deixou-se ser Ricardo.
- Nem lhe vou perguntar o que faz aqui...
- Se perguntares eu não respondo, deixa-me viver a minha vida, por favor – as mãos enrugadas tremem e os olhos fogem do sobrinho.
João não diz mais nada, senta-se ao lado do tio, olhando para caixote do lixo verde e como fundo um vazio de terra sem nome, lá longe a sala, pequenina dali. Deita-se para o lado, até adormecer, fica ali até o tio o chamar, até a triste e só loucura findar.

sábado, 6 de janeiro de 2007

Joana II

Já doem algumas partes do seu estreito corpo e a cabeça já grita alguma febre, será? Está coberta por um casaco de penas que a enrola do pescoço aos tornozelos, e encosta o queixo ao fecho de borracha que desce e sobe, numa vida sem mais nada. Endireita-se um pouco depois de quase escorregar na cadeira, de quase se esquecer e volta a ela. Abre o maço. Um cigarro esquecido sorri para ela, o seu último prazer antes de amachucar o cartão e plástico num nó de lixo fumado, voa para o cesto, e ali fica. Endireita-se mais na cadeira, sente-se torta e escorreita, o facto de ter febre, ou poder ter, não ajuda e torna-a difícil, sem tom. Levanta-se e deixa ver um pouco de rosa, por debaixo do negro do casaco, ajeita-se e esconde o que tem dentro, vestido e dentro dela mesma. Hoje é um dia mau para Joana, chove desde que respira, o trabalho enforca-a nas pipocas e nas carpetes vermelhas, nas colas de lata ou de copo, no chapéu, nas famílias, nos inícios que pode ver mas depois têm de sair e cortar mais bilhetes e sorrir. Não há nada de mais cruel para Joana do que ter de sorrir, quando não quer. E queria ver como acaba. Será que ele morre. Não pode ver, isso mata-a . Isso e o que traz vestido por baixo. Está à porta, só fumo amanhã, só fumo amanhã, compro já, fumo já, ou deixo para amanhã? Fica num fuma não fuma, vai e não fuma, fica, compra e fuma. Nem sabe para quê as duvidas, que são as mesmas desde que jogou um cigarro à boca num dia cinzento de criancice, para quê as duas hipóteses. Sobe as escadas, pede à Mónica um maço de cigarros, fuma dois às passadas coladas, de pressa, desce as escadas. E sai com fumo na boca, sempre a provocar. Abotoa-se ainda mais e esconde-se mais uns centímetros, hoje a sala metia dó, nem olhou bem para ela, nem saboreou como de costume, deviam estar umas cem pessoas, nem tanto, velhos, só velhos. É sempre este início de Outono, este escuro sem força, este lavar das folhas deixa um verde podre em todo o lado. Sem lembrar a sala, olha para a rua, os frouxas luzes amarelas mostram-lhe os caminho, semeado com caixotes, papel, muito papel, que enevoa o negro duma noite fresca quase gelada. As redes que desenhavam a antiga zona industrial estão rasgadas, avisos de perigo rangem, pendurados por um parafuso caridoso, enferrujado, e abandonado. Não anda ninguém, só Joana, com umas negras sapatilhas que a mãe lhe deu Vais ser o mais belo dos cisnes princesa, enquanto lhe punha o cabelo atrás da orelha. Oh mãe porque nunca aceitaste? Porque nunca compreendeste que não sou um cisne? São sempre as mesmas memórias, às mesmas horas, que se embrulham num dejá vu, no segundo em que olha para trás e vê a grandiosidade da sala, parece um gigante moinho, um monstruoso cilindro que caiu no nada, que já se abandonara, longe de tudo e de todos. Está quase a chegar, mais duas luzes amarelas e chega. Chegou e parou. Olha para o candeeiro branco, que nasceu forte no meio de toda aquela debilidade, um tesouro no meio na penumbra. Olha para um lado e para o outro, não está ninguém, nunca está ninguém, uma vez uns miúdos viram-na mas timidamente fugiram. Do bolso do casaco sai uma fita rosa, e os polegares perfeitos esticam-na e elevam-na para trás, uma mão apanha o cabelo húmido do ar (ouve o gotejar de um cano) e ata-o com sossego. O casaco desliza e cai inanimado no chão. E nasce uma flor, brota uma fada, o outro lado, aquele mais leve. Voa até ao centro, até a luz lhe dar um palco, e reluzir de cor o seu maiô e a sua saia, a sua fita, a sua graça. Ouve-se então a música, aos poucos, estica os braços, que sobem e descem em círculos, levantando a direita e depois a esquerda, insinuando o corpo, e cabeça levanta – salta – salta – esticando e mantendo a verticalidade até um fim em que roda de novo os braços e pára, acariciando o tempo, uma duas vezes. Joana sorri. Dançava esta parte no grupo do canto, eram seis grupos de quatro, que se cruzavam, sem se tocar, de um lado para o outro. Agora nada sozinha no lago dos cisnes. Nunca foi perfeita, sempre se sentiu a mais, naquela harmonia. E estica o braço despedindo-se da saudade. A música muda, é o baile, sem par deixando cair os braços e tudo o resto, esticando as mãos para cima, e saltitando de nota em nota. Imagina a sala, o fumo, os fumadores dançando nos bafos, saltando nos cinzeiros, apagam-se e acendem-se isqueiros, ela ri, solta gargalhadas enquanto passa de uns braços para outros, trocando o par, o cigarro e apaga, volta ao negro. Deixa de rir, decide chorar. Vem aqui todas as quintas, umas vezes chora, outras não. Chora por Odette, chora por não gostar de cisnes, por amar os flamingos, chora do cinema, mas é sempre aquela dança que sai. E assim se fecha a rua, entre um gotejar, um assobiar, um ranger que assusta, um frio que se apodera, e lá ao fundo, bem ao fundo um triste flamingo que dança, que dança num lago de cisnes.