quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Pedro IV

(Um pequeno amor chamado ódio)
- E essa mania de pendurares os cintos nos cabides?
- Qual é o problema, incomoda-te é?
- Não, acho só estúpido abrir o armário e ver dezenas de cintos enforcados ali a balançar, é estúpido e é mórbido.
- As minhas manias tornaram-se agora em actos mórbidos é ? Tu realmente não te observas pois não? Irritas-me.
- O que queres dizer por observar? Eu sei o que queres dizer.
- Continuas o idiota de sempre, a fugir a questões com outras questões, que hábil que tu és. Julgas-te invisível é? Julgas que não te vejo a cheirar os copos, os pratos, os talheres, a comida? É doentio, aliás é mórbido!
Os braços perdem-se em gestos concisos no ar, acompanhando a ritmo da fúria.O maestro tem uma t-shirt branca com letras gordas já esbatidas, barba do décimo dia, alguns arrepios no seu grosso cabelo e fica assim; a flauta já não é assim, tem um cabelo louro apanhado na nuca, e um azul leve a cobrir os olhos, tocada por um vestido branco comprido, bonita. Já não são um casal, ambos sabem disso, são apenas um par que veio a uma festa, de uma amiga de um, conhecida do outro, mais um pretexto.
- Não compares, eu faço-o para o bem de todos, cheiro por insistires em por a louça naquele armário velho, faço-o quando os copos ficam virados para baixo, só aí! Escondi as cadeiras, não eras merecedora disso.
- Não te desculpes, nem ponhas as minhas manias acima das tuas, percebes?
- Eu percebo, e a culpa não é minha, a culpa é tua e de todas as tuas ideias terem de estar sempre por cima das minhas. És tu e depois, um bom bocado depois, venho eu. Ou pensas que queria vir a esta festa de merda? Ou pensas que gosto da Bárbara? Detesto-a e acho o namorado um parolo, aquelas patilhas dão-me vómitos, e eu tento, eu bem tento ser amigo, mas como ela abre as pernas a qualquer um é difícil fazer amizades tão facilmente. Nem sei como aquele palhaço se chama. Estás com ar tão sofrido. O teu nome também já desvanece.
Rute prepara-se para responder, mas uma voz devolve a realidade :
- Vamos lá tirar uma foto a esse casal lindo! – diz Bárbara com um sorriso quase excedente, tão plástico que reluz com os seus enormes seios descobertos – Vá lá bem juntinhos!
Pedro agarra-a entre dentes.
- Puta.
- Cabrão.
Flash!

sábado, 17 de fevereiro de 2007

João IV

Apaga o cigarro, sobe e bate no cinzeiro rodando e tentando esconder a réstia que queima. Os dedos pressionam estrangulando o pequeno filtro, sem hipótese de viver, dizendo um adeus num fio de fumo que sobe e rapidamente se desvanece no ar amarelo.
- Você tem de ser bom – conta o brasileiro da mesa do canto, bêbado – Não é assim João?
- É sim senhor – responde sem olhar para ele, só o ouve no seu discurso enrolado, nas suas filosofias de outras terras. Cada dia é um acontecimento, disse-lhe uma vez, João guardou.
- Pode ser pobre, pode ser rico, mas se você for bom, você se dá bem. As pessoas dizem, aquele cara é bom, vamos ajudar ele. Ruindade não nos leva a lado nenhum. – fala com cabelo despenteado, cinzento, e olhos flutuantes, que se encostam num passado saboroso.
- Mas aqui todo o mundo é frio – e aí liga a conversa de sempre, volta ao Brasil por momentos, onde todas as mulheres são belas, onde está calor.
Aqui não, João tem frio, despede-se do companheiro, não sei o teu nome, lança um vislumbre na névoa rasteira que caracteriza o meio lá em baixo. Tenta esquecer que amanhã de manhã estará aqui outra vez, que se irá sentar de novo, em frente ao computador, horas e horas, e depois volta aqui. Você tem de ser bom, lembra-se, ri e pensa que não. Um casal aos beijos, quase caídos nos bancos, ninguém repara nem se incomoda, nem ele se incomoda, as pessoas fumam, tudo o resto passa ao lado, todo o lodo se acumula lentamente nas paredes sem lei nem ordem. Também já fodi nas casas de banho. Cá fora, sopra um desagrado, encolhe o pescoço e sobe o casaco, segue até à praceta da fonte, sem mulher nenhuma em pensamento, estranho. Curva e então vê, dois rapazes, descalços, a apanhar as moedas que as pessoas atiram, a roubar os desejos de uma vida melhor. Com genica arrastam os pés, bem colados à pedra, a sentir o toque, têm um saco de supermercado onde atiram o roubo. A fonte é uma meia lua, que se encosta numa das paredes do antigo hospital, agora armazém de fruta.
João nunca quis saber. Continua seu passo, se acelerar ainda apanho a segunda parte do jogo.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Maria IV


Aos dias


- Gosto dos dias assim fechados e cheios de chuva, gosto de os ver na giratória todos trocados já a sacudirem-se, a fechar o chapéu que não fecha, a lamentarem-se do mau tempo, que no fundo é apenas um saco de boxe para todas as frustrações espremidas, uma desculpa que desculpa a vidinha de merda que se tem. Têm sempre desculpa, gosto dos lamentos, da revolta deles e da minha quietude atrás do balcão. Vem que eu finjo gostar de ti e tratar-te bem, seu classe média sem nada para sorrir, vem que eu sou uma doce mentirosa. Gosto destes dias. E tu Maria, quais são os teus dias?
- Não sei Sara – ela adora divagar, hoje não quero. A hora é aquela que não vem ninguém, é a meia hora, entre horas de quartos, de entradas e saídas, de obrigados e voltem sempre. Assim ficamos aqui as duas. Ela não se cala, sempre a falar mais longe do que eu espero. Mas gosto dela, vejo-me na fúria de algumas palavras, e tenho sede do seu ar promíscuo, daquele botão desabotoado e dos brincos e piercings que forram a orelha esquerda.
- Vá lá Maria, tens de ter algum dia assim, que encha as medidas!
Por acaso tenho. E lá vou eu divagar ou navegar, sem rumo acho eu.Tu és instável Maria.
- Gosto daqueles dias em que o Sol nasce entreaberto, rasgos laranjas que se descobrem aos poucos. Cheira a terra molhada. Todos os caminhos que fazes são os caminhos mais longos, que já nem sabias existir, que alguém deixou ali de propósito, para os dias assim. Podes parar, e se parares, se tu parares, ouves o longo reinado do silêncio. Saboreias e segues caminho. Bebes algo quente e sorris a um estranho, o dia continua guloso, todas as paredes são tocadas como se o tacto fosse novo. Tudo é de propósito, é só mais um dia. Segues no que mais demora e chegas a casa. Embrulhas-te, e vês pela janela o sol cair, meio tosco e sujo. Depois adormeces contigo só...Tenho saudades desses dias...Dos dias assim...
Olha para mim calada. Entra alguém aos empurrões, como se a chuva mordesse e não beijasse, irritado com o vidro. A Sara chama-lhe estúpido. Eu sorrio.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Diogo III

Uma corrente líquida entope as saídas e entradas, engasga a agonia, as vezes contadas até cessar. As mãos no rebordo sujo da sanita e os ombros desistentes a acompanhar as vagas do interior. Tem lágrimas nos olhos, pensa que já parou e vem mais um, agora seco e vazio. Esgotou os recursos, encosta-se na parede, uma mão no chão e outra na cabeça voltada para fora, a tentar com que os pensamentos se fixem. O fim deve ser muito parecido com isto, sempre imaginou que estar quase a morrer seria uma ressaca, do tamanho de um muro, alto. Mas desta vive e confessa-se que nem porco pecador, sujo de arrependimento de uma noite que não viveu. Levanta-se e encara-se por fim, tem várias feridas a pintarem-lhe os rosto, umas que rasgam, outras que descem, e sangue pisado, conquistado de uma batalha. O espelho está manchado e a luz insiste em não se mostrar, mas parece que nunca antes vira tão bem, a camisa às riscas azuis clara, que comprou numa tarde solarenga, lembro-me disso, está agora com gordas manchas vermelhas. Não é o ter feito mal, é não saber que mal foi, ou se foi mal sequer. Com a conchas da mão atira pedaços escassos de água, esfregando impulsivamente, sai, sai!Eu não fiz nada de mal...eu não fiz nada de mal...Sente a cara, e de repente vê que tem braços e tronco, comem-no aos poucos. Cada vez mais rápido, soltando gritos mudos, cada vez com mais força, que fiz eu? Que fiz eu? salta água e sangue sujando ainda mais o descomposto, não fui eu, grita e cai, soluçando em saliva e raiva. Levanta e olha à volta, reconforta-se com a linha onde está escrito: tu és bom Diogo, tu és bom. Não associa nada a nada. Despede-se sem olhar do quarto, sai com força gasta e bate a madeira. Olha para a solidão encerrada. Número 6.