terça-feira, 17 de abril de 2007

Sofia

Deixa-se ouvir no bater da água enquanto abotoa as ideias. Quantas vezes cruzaste este rio? Tantas que já nem o cheiro da ferrugem e da tinta podre a incomodam, pelo contrário, dão-lhe um calor estranho de leite e bolachas, imagem duma casa ausente e de um lar que se constrói na viagem. O vento vai baralhando o cabelo, ainda preso pelos óculos de sol, uma pedra negra de plástico flutuante num dourar mais dourado pelos raios claros e mornos de um Sol guloso.O cais vai ficando, momento a momento, inferior, pintado para trás por um traço de espuma, postal dos olhos de Sofia. Senta-se sempre no mais alto e ventoso dos lugares da popa, por vezes tão ruidoso que se desloca de toda a calma e sossego que merece. Atirei o pau ao gato, canta a menina do chapéu e do balão vermelho, abana a cabeça de um lado para o outro enquanto se entusiasma no seu concerto privado pausado por um forte mascar de uma pastilha desbotada, em tempos vermelha também. Tem uma camisa branca tatuada com uma flor, uma tulipa. Se eu fosse uma flor era uma tulipa. Empoleira-se para ver metal a rasgar o manto de água, para realizar o que está a ouvir, em esforço e bicos de pés, imediatamente corrigidos por uma mãe ausente, agora quase preocupada - Vem para dentro, está frio aqui. De arrasto abandona Sofia, para o interior, dos graffitis e dos sacos-de-cama. As pessoas parecem mais tristes lá dentro. Quase sem ser um movimento a sua mão desliza na mala e num toque mais concreto, retira o maço. Protege a chama num procedimento facilitado pelo vento ou pelo que resta dele, pois quando ele grita, bem tenta, voltas e voltas a rodar o isqueiro, até o polegar rasgar em dor.E pensamos sempre só mais esta vez. Até que dá um salto ao abrigo, acende e volta com o olhar cheio de fumo. Não navegam muitas almas para a outra margem, um casal mais velho domina um enorme mapa enquanto indentifica os pequenos lugares agora reais e palpáveis, enquanto que um casal mais novo se deixa enovelar num apertado aconchego. Dois homens de pé fumam enquanto se debatem com garra por algo que discordam, um olha para Sofia de vez em quando, bebendo do seu ar frágil, dos cabelos que se calam nos ombros, dos finos braços, da saia comprida, do seu fitar sereno, esferas cor de mel.O fumo dilui-se depressa na claridade, deixa de ser nuvem e o ritual perde esse passo. Gosto de ver o meu fumo.Vinda do interior regressa o atirei o pau ao gato, com igual energia. A acompanhar a sua entrada um sopro mais forte leva o seu balão. O fio fica preso no parapeito de metal, tremendo com força para se soltar. A sua dona corre em passos curtos em tom de choro, empoleira-se para o agarrar, tenta subir e consegue. Sofia levanta-se e corre para a segurar, e ela quase a segurar o balão, os dedos já tocam, cada vez mais do lado de lá. Assim que agarra o balão perde o chapéu, e Sofia agarra-a com força seguida mais uma vez da mãe ausente.O chapéu ficou no rebordo externo, um estreito suporte povoado por betas e latas de coca-cola.Eu vou lá buscar diz Sofia, e trepa rapidamente para o lado de lá, coloca um pé de cada vez com as mãos bem seguras, para agarrar o prometido tem de largar um mão e esticar-se ao limite para baixo, parece tão seguro. Estica estica,está quase .No segundo em que agarra o chapéu, a mão direita que a suportava escorrega e solta um adeus.Um ultimo olhar para a mãe e filha apavoradas, não largues o chapéu. O seu corpo bate de costas na água e rapidamente um tapete de espuma esconde o sucedido. Adeus Sofia.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

João V

- Tenho dois momentos em que percebo que o tempo realmente anda. Um é a mudança da hora. Acordo às 10 que já são 11, sem saber da troca mas cedo o cheiro da luz me diz algo estranho, uma sensação de falsa realidade, até falhar um encontro ou ver nas notícias, ou falhar as notícias porque já mudou - boceja com garra afogando os olhos em água que limpa sem pressa com a palma da mão, uma de cada vez. As narinas dilatam e soltam duas correntes de fumo que choca na mesa e se dispersa como uma onda em maré baixa, deliciosamente e com a lentidão necessária que se mastiga a costa.
- Nunca te aconteceu?Parece que o dia não encaixa em ti...
- E o outro?-nunca teve paciência para o escutar e muitas das vezes deixa-se andar sem engolir o discurso alheio. Hoje está com alguma atenção, a suficiente para contra argumentar, ou simplesmente perguntar.
- O outro?
- Sim o outro momento, não disseste que eram dois.
- O outro é quando sobe o preço da bica. Todos os dias me movo a saber quanto vou expulsar da minha carteira gasta e suja, até saber que todos os dias é aquela moeda, deixamos de falar e simplesmente vestimos o hábito como em todos os outros nadas. Até ao minuto em que quase envergonhado e triste por me dar tal notícia o empregado magriço me diz: são mais 5 cêntimos, é que já subiu...Com cara de desculpa, não me peças desculpa homem, não tens culpa.
João vai soltando sorrisos de fumo à medida que a revolução dos dias avança na boca do Carlos. Vive sentado na secretária ao lado da sua, perpendicular, desenhando 90º. Espreitam-se por cima dos monitores quando precisam do contacto visual para endurecer as palavra, mas a maioria das horas são teclas a bater. Nunca conheceu ninguém tão teórico e mentiroso, ninguém com tantas mentiras, e não são aldrabices comuns, são verdadeiras histórias construídas de raíz, e com tantos mas tantos promenores que por vezes João pensa serem verdades. Diz que foi ele que inventou o tipo de letra Arial e também foi muito importante na criação do Tahoma. Já caiu dum 8º andar. Já foi mordido por uma piranha no joelho direito. Às vezes João ainda tenta mas ele molda alibis noutros alibis e torna-se tão forte e complexa a mentira que acaba por desistir.
-Esta empregada é nova não é?
-Nunca reparaste?
-No quê?
Como é possível nunca teres reparado?Não vou dizer, agora pareço eu a contar uma mentira. Há verdades estranhas.
-Nada esquece. Sim é nova.Vamos?
Apagam-se e levantam-se encaixando as respectivas cadeiras na mesa e circundando o cilindro envidraçado. Descem para o parque. Lembram-se do sítio. Longe ou menos perto vão os dias em que se perdiam. Num destes almoços tiveram de pedir ao segurança para dar uma volta na moto-quatro à descoberta do pequeno veículo escondido entre uma enorme carrinha amarela e um pilar de cimento branco e vermelho. Entram no pequeno Fiat Punto, branco e só com o espelho do lado do condutor, à direita de João um enorme buraco de onde saem fios enrugados e coloridos.
-Quando tiras a carta?
-Não vou tirar.
-Mas dava-te jeito.
-Chego a todo o lado - arrogantemente falando e expressando o enjoo com que aborda este tema já debatido em viagens anteriores.
-Mas tens medo de conduzir?
-Não tenho medo, nunca conduzi, é uma opção, só isso.- tentado afirmar o ponto final.
-Sabes quem vi hoje?- conseguiu - no trânsito mesmo ao meu lado?
-Diz lá..
-O Antonio Banderas.

Diogo V

É uma delas. Numa das asas. Trabalhando para que a atmosfera se conquiste lentamente de um rosa guloso. É uma delas naquele voar que apetece beber e cheirar, enchendo a pele de seda e voltando ao chão vezes e vezes sem conta. É uma delas, uma pena consciente de toda a vontade e amor com que se fura uma rua e rouba uma cidade. Nos segundos que dura o voo, Diogo é apenas isso. O som assusta se for consumido sem mais ver, mas decalcado nas aves, em todo o descer e subir com se faz um querer, um fugir, torna-se no filme mais belo que alguma vez assistiu em toda a sua vida. As luzes acendem-se e as buzinas e gritos rebentam, é um pós guerra, alguém bombardeou a cidade e se esqueceu de avisar, de dizer olá. Eles esvoaçam lá longe e Diogo fica entregue à poesia, sabendo que agora vem o caos. Volta ao vómito, à dor de cabeça, ao sangue e à pouca memória, já cá estou. Alarmes e alarmes, a polícia vai chegando, ouvindo relatos já trocados, diz-se de ouvido lançado que mais animais fugiram, leões , diz-se. Muitos olham para o fundo da rua, como se de uma nascente se tratasse e uma sede os consumisse. Parou, a poeira vai caindo da árvore e já se vê o dia. Na montra com dez televisões, dez acontecimentos iguais. Soltaram flamingos, um guarda morreu. Todos os prédios recuam enquanto ele avança até á constatação construída em sangue. Não se lembra. Não fui eu. Ou fui?