terça-feira, 29 de maio de 2007

Diogo VI

Quantas são? Muitas, todas empilhadas na montra do mundo actual, pixel a pixel, até à lente ensaguentada da retina de Diogo. Tanto a reter, tanto a reter e apenas uma pena na mão, tem pena de si. De si e do homem que amanha já não acorda cedo nem come uma fofa torrada com um sumo de laranja, ou o porco que ameça os filhos com um cinto antes de ir trabalhar, sabe lá, tem apenas pena. Os pés colaram ao alcatrão e tenta pintar demasiada cor no quadro, enfiar demasiadas pessoas num mini, como aqueles concursos idiotas, assim é a sua cabeça, a encher e a apertar.ainda cabe mais um!as câmaras giram à sua volta, entre fumo e bastonadas nos ladrões de ocasião, os que roubam quando chovem os sapos (o mundo acaba pelos homens, não pelos sapos).- Saiam da estrada! - ecoa lá longe e cá perto, altura de descolar. Ainda há muita névoa na sua ressaca, e uma placa de zinco enfiada testa adentro. Café e depois resolvo isto. Um pouco de movimento sem abusar, que nem lesma veloz, deixando a gosma da noite passada. -Saiam da estrada! Um café em frente -Saiam da estrada,buzinas e sirenes, lá longe e um café em frente. Saiam da estrada! Sirenes perto a meio da viagem até ao outro lado, olha com aflição no momento em que a ambulância começa a travar e a queimar a borracha. Nestes momentos há sempre uma mulher que grita. Diogo arrepende-se mais uma vez do vodka, desculpa.E uma pancada seca atinge-o de lado, tingindo o rosa flamingo em vermelho sangue.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

João VI

O tossir quebra o silêncio, copo de vidro que estilhaça no vácuo. Eriça os pêlos da atenção e volta a si. Desconforta-se na cadeira procurando um equilíbrio que não quer ser encontrado, é apenas o movimento que é necessário para satisfazer a fome. Firmes dedadas na gola, puxada e engomada até à perfeição, reflexo de algo bonito, pensa. Já roía as unhas, mas mantem a pose, porque sabe que o que queria era fumo, a inchá-lo que nem um balão, a povoar as estradas sanguíneas que nem noite de nevoeiro maciço. Mas não pode. Por isso tapa com as unhas. E também não o faz.
[A primeira vez que fumei tinha treze anos. No banco rectangular de pedra cinzenta, rodeado de gravilha, perto da igreja. Não tossi, tinham-me dito, inspira logo, logo, assim o fiz e até do nariz cuspi fumo.]
Feições cavernosas de um lado e do outro. Um rio separa o velho do novo, deixando João numa das margens, dedos entrelaçados e olhos inundados no lado de lá. Com um pincel pinta a preto os mortos ou os que se contorcem com mais força e deixa a cor apenas nela. Engole um egoísmo e falta de sentimento, desde sempre diz, ou confronta-o com o quase amor que sente pela estranha. Nunca precisou de desculpas para o coração não bater, mas talvez por ele o fazer agora, se desculpe. Ela sorri e sussurra com o homem do lado, enquanto uma fatia de cabelo se encaixa atrás da orelha, escondendo o brilho e delicadeza assente nas mãos e rosto , nuvens de mel. O fundo fundo está desfocado, uma grávida grita com força as maldades do vício, abraçada por palmas e abraços, de uma vitória que só cheira a mais doença, talvez seja do chão ou da falta de fumo. Levanta-se e ata o cabelo descobrindo o pescoço, tudo sem hora, escrevendo poesia em cada toque. A vontade de a despir aumenta, que irás tu dizer, pensa João no canto do lábio, que se estica para cima, com um ar de descoberta. Nunca tinha possuído um segredo que não fosse seu. E tu meu segredo tens nome?
- Boa noite a todos, o meu nome é Joana e não fumo há três anos.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Maria VI


Acordamos ao lado de um corpo que nunca sentimos e sentimo-nos sujos.
O paladar palpita na bílis e no copo manchado no rebordo da mesa. Dois copos.houve festa.
Sentamo-nos e devemos estar alegres, porquê?perguntaste um dia quando ainda sorria e te via entre os pombos no jardim.porque é que temos de ser a criança que corre atrás do cachecol e não podemos ser o velho que espera até o escuro cair, sentado na pedra redonda, à espera de alguém para jogar uma partida de xadrez, que coma o cavalo ou seja morto pelo bispo.
A ouvir o silvo da paz ou a correr entre o fumo dos carros, nunca pude escolher porque nunca me sentei e caí.Talvez uma vez no escorrega, mas aí era pita, burra.
Acordamos ao lado da pessoa que nunca nos viu, já me fodeu, mas nunca me viu.Como é cinzento um dia de Primavera quando já não mostramos os dentes por tudo e por nada, a pensar sempre, era isto que querias quando te cortaram o cordão e berraste que nem animal perdido?Não sei se era isto mas é neste espelho que esfrego o cabelo e deslizo na pele pisada e fermentada.Desgosto. Só pode ser esse bicho que encanta a minha fábula.De capítulo em capítulo, como se a dor fosse um processo, sempre a mastigar calçada, da testa até à nuca, repetidas e sentidas vezes até a carne alertar, e vem a dor outra vez.
E esses cabrões que adoram o silêncio.Eu quero o odor de um autocarro cheio, de um encontrão rolante, numa escada de fatos e gravatas, quero as buzinas das pernas e das saias, quero o calor pestilento e peganhoso, quero.
Acordamos ao lado de quem pensámos ser o amor da nossa vida. E quando te perguntarem, amor de uma vida, de quem é a culpa da fome no mundo
do estado do país
dizes que a culpa é minha.
Afinal a culpa sempre foi
minha.

sábado, 12 de maio de 2007

Joana VI

Gostas de ouvir a vida dos outros?
Não. Eu sou a vida dos outros.

- Levas o livro?
Joana acusa a presença do casal.Está de pé, pescoço torcido, a ler os titulos direitos das obras que se seguram umas às outras na prateleira. Por entre o murmurinho das páginas e os sussuros da tinta, ouve o diálogo fresco, acabado de nascer nas suas costas. Ele forte e desarranjado folheia um livro, ela fina em tons pastel senta-se à sua frente. Ele não olha para ela, ela olha para ele.
- Levas o livro?
Ele não a ouve, ela fala com ele. Joana deixa de olhar, passa a representar a procura e a abraçar o seu estatuto de voyeur. É tão bom trincar vidas alheias.
- Estás a ler o livro todo?
Surdo folheia mais e uma e outra página.
- Já sei como é a tua cara - o seu vestido grosso, os seus óculos carregados e sua face redonda tornam-na num ser alienado daquela realidade, fechada num monólogo - Tens barba, sobrancelhas grossas, usas sempre a mesma roupa - pausa e discursa monotonamente, divagando sem tom- só tens dois pares de calças.
Vertical, voltada para os imensos volumes cheiro semi-novo, finge ler com atenção um fino livro de capa vermelha, olhando por entre as deixas para a dupla sentada mesmo à sua esquerda. Ele lá prossegue a leitura na sua bolha, Joana imagina os castelos ou as ruelas escuras por onde ele anda, de espada ou pistola, talvez à chuva.
- Já não compras calças há quanto tempo? Os teus sapatos estão gastos.
Nem um musculo se move.
- Estás a ler o livro todo para ver se é bom e só depois o levas é?
Joana arruma o livro. Já se sente satisfeita. Aos poucos, larga os outros, ainda ouvindo.
- Não és nada metrossexual, não cuidas de ti. É a tua mãe que tem de fazer tudo...

Pedro VI

Vê o soluçar do veículo como o ritmo da sua própria vida. Um passo mau de passar que se desmarca do seguinte, separados por uma pausa acentuada - houve o tempo em que eras fluido. Solta as mãos e deixa-as cair no colo enquanto detecta sem preocupação uma nódoa na manga esquerda. Os pensamentos pesados deixam-se cair para trás, o tecto continua lá, esburacado e vazio, uma maneira de pouparem dinheiro, disse alguém de engenharia. o nome já não sabe. Absorve o ambiente arrastando a retina nas mais diversas direccções enquanto o B passa de 1 para 2 e depois para 3. As mãos sobem ao volante, não estão muitos carros neste fim de dia, tornando o vazio num espaço amplo e infinito, tornando a viagem num acto pobre e solitário. As ruas têm uma linha de ritmo, pausada nos postes e nos passos de alguém longe, juntando no mapa que Pedro guarda desde o primeiro mês na sua cabeça. No armazém demorou mais a processar o sítio. O tecto ,aqui fraco de espírito, lá subia aos céus, de cargas enroladas centenas de vezes em lençóis plásticos, que se reflectiam nas cores e se sentavam na madeira. O ronronar do motor era de outros lados, e a precisão era requisito, elevar as garras e encaixa-las no intervalo da base, descer e abandoná-la noutro lado, para alguém consumir. E-5 é um bom pretexto para um cigarro. Qualquer letra é pretexto para um cigarro,e desculpa para nunca deixar o fumo. hoje estou com a cabeça cheia, hoje estou pisado, hoje não acabo, hoje quero tempo, hoje choveu e provocou em mim um estado de profunda depressão, vai daí, hoje tenho de fumar. Pedro desculpa-se muito sempre que ouve os seus pulmões doentes e reprimidos em gritos de apelo. hoje trabalho neste buraco, tenho de fumar. Como se os seus alveólos pulmunares o desculpassem com estas mentiras descartáveis. Se qualquer espera é sinónimo de nicotina então a vida de Pedro é um maço de tabaco. As pessoas fumam quando esperam. Eu estou sempre à espera. Logo fumo. é este o penso rápido que cola na testa e o aquece em noites de preocupação gelada. Pára. Desconfia dos carros circundantes e entra com rapidez na porta metálica. Apalpa a parede ao de leve até à luz, o seu tesouro é descoberto, vou-te trazer aqui Maria. Depois de saciado vira-se mas depara-se com alguém que não ouviu entrar. -Lembras-te de mim? questiona com os olhos em sangue levantando o enorme taco e de uma só vontande atinge Pedro no rosto. Cai e ve o mundo a rasgar-se num cimento húmido.