quinta-feira, 1 de março de 2007

Diogo IV

Roda o tronco e toma por estrada o escuro corredor que se avizinha. Cada porta que se avança é uma questão que transpira na cara ensanguentada de Diogo, cheira os ténues candeeiros e a alcatifa verde que se desenrola até ao fim. Imagina o canudo ainda enrolado, rodando e forrando o chão à medida que passa, a cada passada, estrela de cinema. Todas as portas têm números, um lado ímpar e um lado par, frente a frente. Não se esquece do seu lado de ontem à noite, que não se lembra. Ainda treme numa gravidade mais pesada e incomodativa, sabe que é mais lento, criança a descobrir uma película que nunca viu. Os olhos desdobram-se nas direcções possíveis em repetidas incursões de reconhecimento, nem um sinal amigo da memória, essa amiga de outros dias que se apaga sem avisar. Mas como? Será que me esqueci ou que nunca me lembrei? Nunca mais sossega o andar porque o túnel é realmente comprido, ouve gemer uma porta atrás de si, olha por cima com sossego. Uns caracóis castanhos e uma mochila vermelha passam por si a correr. Outra porta, agora a frente, uma barriga destapada e uns óculos gordurosos repelem toda a figura de Diogo. Não olhes, não olhes. Pára uns dez segundos de ameaça mas depois segue o seu caminho. As paredes escorrem um creme, sujas quando ligam o tecto, esse sim cinzento. O ar é uma corrente de ar que se envolve num abafar de pouca luz e ácaros, assente num perfume consumido de edifício velho. Continua com um sapato à frente do outro, carne picada e infernizada por uma placa de zinco inexistente que corta Diogo ao meio. O travo metalizado vai desaparecendo, na sopa de paladares fortes que reina na sua boca, à medida que vai mastigando em seco, seco. As escadas, aparecem e desce, sem olhar para os outros andares, comendo os degraus, ouvindo as televisões e os rádios ligados no 4, no 3, no 2, no 1 e por fim aterra numa nuvem de luz que se destaca do exterior, rompendo a gigante porta envidraçada que tranca o hall. Azulejos num jogo de quadrados forram tudo o resto. Sai e respira tão fundo que pensa estoirar. Não bebo mais. E na bebida liga-se à terra, seguindo um carreiro, migalhas de ideias, espalhadas que vai apanhando, e sabe que fuma, pois sabe. E luz, estive na sala!
No momento em que a imagem da sala lhe é clara, um bando de flamingos passa no meio da estrada, voando mesmo à sua frente.

3 comentários:

João Gaspar disse...

devias tar cá com uma broa.

isto sóbrio não faz sentido. vou-me etilizar e depois passo por aqui para ver os flamingos no meio da estrada.

Miguel Ferreira disse...

às vezes o meu estado normal anda de mão dada com um estado de total demência

Anónimo disse...

eu diria que era sempre...