terça-feira, 19 de junho de 2007

Joana VII

O domingo não acaba só porque os ponteiros decidem andar mais aquele segundo e colarem-se que nem duas osgas no tecto de um quarto, não porque os alarmes às vezes tocam e os sinos às vezes balançam dando cheiro e carne ao medo, fumo.O domingo acaba e veste-se de segunda-feira porque a areia muda. A valsa das beatas ou a praia das tormentas, dizem os velhos e os trocados, entre outros cuspos que se saltam de orelha em orelha. Joana prefere a dança, por razões de cor e de sintonia. Veio ver a valsa menina? Abana apenas a cabeça castanha, com uma cascata clara que lhe limita face e a atira para baixo. Já se esqueceu de o pintar ou esqueceu-se que não gosta dele mais luminoso, embora lhe digam que os olhos redondos e a seda das curvas se renasce com ele assim. Joana não liga. Já falta pouco e as pessoas vão aninhando a fé junto do grande cinzeiro;
uma velha curvada, casaco azul
jovem cinzenta, mala a tiracolo
rapaz moreno, caracóis e boné
casaco branco, óculos graudos
um iogurte bebível, casaco vermelho
fato de treino azul, mochila quadrada
camisa ao xadrez , desabotoada
gravata roxa, rosa na ponta
meias descaídas, calcanhar descoberto
boina na mão, mão na cabeça
Cinzas de vida, agitadas no remoinho de badaladas, o espectaculo da semana, desenhado a papel químico de outros olhares. Ao fundo alguém mete moedas no telefone que funciona.
cabelo escorrido, casaco de ganga atado à cintura.
Vem ao início do ar, cada vez mais grave e sonoro. aí começa a girar, claras em castelo numa panela metálica. já se sente a areia.

Maria VII

Escrevo com força enquanto o papel me atravessa a cabeça e corre para outros pastos, onde talvez me deite e cheire uma papoila. A cliente, baixa e anafada, caracois quase ausentes na planície descoberta da idade, começa e soltar urros e sussurros, a discrição de quem quer mostrar que está ali e que alguma coisa a diverte. Que quer esta agora? Para além do registo da entrada e da chave com o número cravado a negro. Continuas até eu olhar para ti não é?
- É engraçada a maneira como a menina escreve!
Como não me lembrei disto antes, desde que cheirava a madeira das velhas escrivaninhas que relinchavam de dor sempre que torcia os dedos e desenhava de forma errada. A caneta encosta à barriga do polegar que pisa o médio, o indicar e o anelar, os três lado a lado. depois vem o mindinho que está solto debaixo de tudo resto. Desde os laços vermelhos, desde o leite com chocolate no intervalo das 10, que as minhas mãos se moldavam assim nos lápis de cor e de cera, nas canetas, bic e de feltro. Até agora que sou magra, pálida e fumo que nem uma cadela. Tento com que os meus lábios se mexam perante os dentes sujos de massa e o vestido apertado, igual a um cortinado que a minha avó tinha na sala de jantar. Sê simpática.
- Sabe do que é?
Esta é nova, a origem, desconhecia qualquer causa religiosa ou médica para esta minha diferença.
- Não...
- Isso é a menina que devia ter sido canhota e contrariou ou foi contrariada e agora agarra assim com a mão direita. Não vê que só os canhotos escrevem assim com a mão curvada. Uma amiga da minha afilhada é tal e qual, e disseram-lhe isso, que engraçado.
- Nunca tinha ouvido.
E calquei o pensamento, [já há desconforto quando não minto] não me é mesmo familiar esta versão, aliás toda a vida pensei que era apenas uma questão de jeito, no início soube a mel e adaptei-me assim. Afinal contrariei um fado.
- Boa estadia!
Não estiques mais que a boca tem um limite. Olho a minha mão esquerda, pequena e atrofiada como sempre a vi, mas agora sei que a força foi morta por mim e neste pequeno pulo em que cheiro um malmequer sinto-me mais alta.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

João VII

Viver antes e depois dá-nos sempre um termo de comparação, entre o antes e o depois. Lá se compara com os tempos em que o nevoeiro enchia de cinzento e de cheiro as mesas baixas do karaoke. Os animais que viveram antes, nas fábricas poluídas e nas calçadas lamacentas entram agora em florestas virgens. Já tinha discutido isto na sala milhares de vezes, e todos os outros pecadores acenam que sim, quando afirma que se sente sujo, de outra realidade, parece que retiraram um membro aos sítios que se articulavam nas nossas vidas e os fecharam nesta merda de armazém. [Encosta o nariz a si, e cheira o perfume, faz sempre isto] Como chegar a casa e não ter a parede da sala, ter-se desfeito em memórias e papelada, e as crostas que ficaram? sanguessugas duma realidade que à meia noite já não é? Ao menos ficam as saudades.
Abre a porta do saloon e entra na mata, o que mais o perturba é o odor singular a nada, a estofos e a música. Alguns ainda tentaram em vão encher seus espaços de fumo, daquele que sai em tubos monstruosos e se cola nos dentes e no cabelo. Lá estão elas, a Susana e a Cláudia, contornando as formas bem delineadas assentes na visão cristalina. Chega à mesa e senta-se. Dois beijos na Cláudia, e um apertado beijo em Susana, desenrola o sorriso rasgado que atravessa o rosto de um lado ao outro, sempre predador, desde o cabelo corrido para trás, louro em certas luzes, até á camisa graciosamente aberta num descuido pensado com paciência. Demoraste tanto..Peço desculpa, foi o meu tio, põe-se a divagar[mentira].
- Então ele está quase?
- Está bebado, já lhe disse para não actuar, mas só diz sim, idiota - Perdeu a graça que fazia dela uma mulher leve, de dentes impecavelmente perfeitos, agarra a mala com força contra o colo e olha para o palco vazio. João entrelaça os dedos e dispensa falsas preocupações com a parceira, trinca-lhe o pescoço e diz que a ama. não me condenes por não me conheceres, não ias gostar. A bateria já está a postos,entram os restantes, Carlos por último.
- Mas quando é que ele bebeu assim?
- São aqueles jantares ,aquelas demandas de beber até vomitar e perder a noção do aceitável, parecem crianças.
-Boa noite - o olhar saltita embriagado à procura de algo que o ligue à terra, vê João -Boa noite..nós somos os Sulistas e vamos dar-vos rooooock, conhecem o rock?é um gajo porreiro, esse tal de rock. os joelhos escorregam, varas quebradas que já não têm posição firme, sustentadas pelas mãos pregadas com força no microfone. E antes de cantar a primeira a música, quero mandar cumprimentos e agradecer por me virem ver à minha namorada...ela não gosta da banda nem deste bar, como é como é? espelunca e uma cambada de adolescentes de meia idade, mas eu perdoo-te amor... Ao lado um amigo de infância...
Existem muitos e muitos segundos com personalidadee, em que sabemos exactamente o que desejamos, são os instantes mais definidos e concretos na vida de um pobre e confuso homem, e naquele, João nunca esteve tão nele, e na ânsia de se desfazer em pedaços de vento, em brotar dum casulo que nem borboleta corada e esvoaçar dali para fora. Mas era tarde, já tinha sido marcado.Tinha na testa a pinta da humilhação.
Desde pequeninos, depois tivemos separados uns anos e agora voltámos...a ser amigos, a ir as putas não é companheiro? não podemos ser homens de uma mulher só como me disseste e tens razão, tu sabes, já tiveste mais gajas, é quase uma por semana não é? até a minha namorada..Cláudia levanta-se e atira com força o grosso cinzeiro de vidro, que se estilhaça aos pés de Carlos, este ri-se perdido, estava a brincar, isto é tudo a brincar. As feições são uma massa amorfa de ódio e pena, há um buraco para me esconder? Susana saiu entretanto, e Cláudia esbraceja para eu ir lá acabar com o show, tira-o dali João. Depois de feitas as apresentações, vamos à música, todos os outros elementos permitem que álcool os coma também, mais ou menos consciente mas sem reacção ao estado caótico do homem da voz. Alguém gritas ofensas, és uma vergonha ouvi enquanto o puxava, anda lá, não estás bem sai daí, Quando lhe passa o braço por cima, um empurrão forte no peito desiquilibra-o para cima da bateria.
Já não se ouve o nada cristalino das novas papeladas, encafuadas algures num escritório, com as estiquetas a indicarem os anos e as letras a indicarem os nomes. Ia bem um cigarro ia, enquanto se levanta com raiva e seu companheiro canta esganiçado palavras surdas dançando contra a gravidade, mais gente sobe ao palco. [Começa a dar o Karma Chameleon bem alto] Enquanto se enfaixa na desordem, pensa no antes e no depois, e nas saudades como algo proveitoso de um triste ponto final.