quarta-feira, 18 de julho de 2007

João VIII

Conta mentalmente os posters que estão pregados acima das cabeças que entram para o enorme átrio que leva às pipocas e aos bilhetes. Antes as coisas eram separadas, bebidas dum lado, papel do outro. A decisão de um filme mais ou menos longo estava separada da decisão de um estômago com mais ou menos pipocas. Mas as vontades também mudam, e agora é tudo no mesmo balcão, sujando as mãos de manteiga, limpando no bilhete, rasgado de seguida e seguido por um gole no enorme balde de refrigerante. Mas hoje não veio ver as películas e os estofos azuis, veio vê-la. Cruza as pessoas e olha nos intervalos para o infinito, como o seu horizonte fosse só um. Joana, fechada num papel de parede que desconhece, vai rasgando bilhetes e sorrindo à medida que os espectadores decididos sobem as escadas. Conversa também com o colega da frente, dá-lhe indicações sobre alguma coisa, parece decidida, pelo menos é isso que chega a João. Deste lado pareces tão feliz, será que és tu quando passar o vidro? Sempre admirou algumas mulheres, aquelas que não tem e aquelas que teme. Joana era as duas coisas e era ali, no vício da conversa casual, do esforço do quotidiano, nas rugas mais simples, nos gestos mais virgens, que ela era completamente perfeita.

Pedro VII

Vai estalando o metal nos carris enquanto o balanço intermitente dos estômagos e das luzes se escurece, numa sinfonia cansada, com notas do suor e da cidade. A voz gélida que anuncia as paragens transmite a geografia, na desorientação de cada suspiro que alimenta mais um dia, é um de cada vez, deve pensar o jornal que se abre solto ou o hamburger que se come amarrado a um pedaço de papel vegetal. Pedro deixa o fio andar solto de cadeira em cadeira, sentado, deixa-o ir com a maré e com o balanço [vomito sempre que ando de barco, sempre], o isco feito de olho e saudade percorre as profundezas de outros azuis, por vezes quase sem tempo, outras vezes agarra e trocam-se carícias nas retinas que se ancoram uma na outra. E fogem tímidos quando mordem com mais força. De ver um rosto parado, enquanto as portas se abrem, não de pele, mas sim papel, lambido nos azulejos, conta os dias desde o seu primeiro berro. Todas as caras bonitas de base e rímel, todas as pernas másculas são agora mais novas que ele, sente a idade. Longe os tempos em que o mundo era mais velho e ele catraio. Agora doem-lhe as costas de carregar com estas alegrias frescas que lhe entortam o coração. Antes de apitar e fechar, um pequeno corpo esgueira-se veloz no para o meio da gente fechada. Catarina és tu?

Diogo VII

Lembra-se de um dia ter pensado que estar deprimido era acordar e os olhos doerem que nem duas ameixas podres. Era descansar e o sangue continuar a estar fora do prazo sem a saúde da segunda-feira. Lembra-se disso porque está num estado análogo, talvez seja isto o seu ser deprimido mas não restam dúvidas que este é o seu ser dorido.
Vê apenas branco horizontal, enquanto uns enormes olhos azuis o acolhem
- Está-me a ouvir? solta os dedos, e estala-os com força no eco da velocidade, cada vez mais perto, mais terrestre."Sabes a sangue."
- Pode-me dizer o seu nome? Qual? O da lista telefónica ou o que está estendido nesta maca?
- Diogo...
- Diogo, o senhor foi atropelado e fracturou o braço, apenas isso, podia ter sido bem pior.
Nunca esta frase o a animou, nem esta nem a outra: vais encontrar muitas situações assim ao longo da vida, usada quando o azar ou falta de ânimo nos acaba por roubar a linearidade da certeza. Como podemos ficar felizes se nos dizem que estamos perdidos, e que não é só desta vez, que será uma e outra, repetidamente ao longo do nosso caminho. Isso reconforta? Só se for um doido.
- O meu nome é Catarina e vou levá-lo até ao hospital e lé tratam do senhor num instante.
Realmente dói-lhe o braço, mas pensou que já vinha da noite.