sábado, 31 de março de 2007

Maria V

- Hoje ainda não lavei os dentes.
- Porquê?
- Porque ainda não fui a casa.
- Mas costumas ir a casa?
- Sabes bem que nunca vou a casa.
- Então porque disseste que ainda não tinhas lavado os dentes como se fosse algo de invulgar?
- Não é algo de invulgar, é algo que me desagrada, só isso.
- Traz a escova como eu.
- Não vou andar com uma escova de dentes e com a pasta na mala. É parolo. E onde lavava, aqui nas casas de banho?
- Eu lavo sempre. Não suporto o sabor do cigarro depois de fumar, aquele destilar que se acumula na saliva.
- Eu gosto, do sabor, mas também gosto de lavar os dentes.
- Come uma pastilha, aquelas que lavam os dentes.
- Pastilhas não lavam dentes.
- Fazem por isso.
- Mas não é a mesma coisa.
- Pois não.
- Já pediste os cafés? Estamos mesmo em cima.
- Já pedi mas ela deve ser burra.
- É nova cá não é?
- Claro que é nova. Nunca reparaste que este café tem uma empregada diferente por dia?
- Não tem nada.
- Tem sim.
- Qual é a lógica disso?
- Não sei, não precisa de ter lógica, querem uma pessoa diferente para cada dia do ano. Eles lá sabem. Ao menos não te fartas do empregado ou empregada.
- Isso não faz sentido. Qualquer café quer preservar uma relação entre cliente e empregado, algo com uma certa duração.
- Mas este não.
- Olha vêm aí os cafés.
- Obrigado.
- Falta o copo de água..
- Tinhas pedido?
- Claro que tinha pedido, fazem por se esquecer, como é de graça não se lembram.
- Eu não ligo.
- Para mim não há café sem copo de água. Metam jarros e copos, eu sirvo-em agora não me tirem a água, de borla. Olha lá vem ela, ainda por cima parece que ficou chateada.
- Obrigado e pagava já os cafés.
- Já subiu o café?
- Chulos da merda.
- Vamos lá.

terça-feira, 20 de março de 2007

Pedro V

..............................................................................................Fumar

Abre os olhos. Imóvel na cama grava o escuro, tenta desenhar algo no tecto, mas não há papel. Apenas uma nuvem negra que o tenta levar de volta para um sonho recente do qual não se lembra. Tenta não sentir aquilo que o acordou, e que se começa a espalhar, formigueiro nos dedos, tenta-se afastar e fugir para outros cantos. Só o consome mais, só fica mais perto. Começam a pairar os helicópteros. Há quem queira carneiros, ou outro qualquer animal que salte uma vedação sendo constantemente contado, Pedro limita-se a remexer no já feito, e à sua frente, ele mesmo, no cimo de umas escadas rolantes. Está com um ar mais jovem, a sua roupa ainda é passada a ferro, já se curva, mas ainda não tem o olhar pisado de agora. Veste um laranja ridículo, que transcreve a submissão a qualquer e estúpida tarefa por umas notas. Na mão esquerda um helicóptero preto com uma enorme listra laranja, na outra, o cordel que cria o voo, pronto a ser puxado, na sua cabeça arrancado e queimado. Levanta a aeronave e num esticão ela celebra um decadente e forçado voar, por cima das cabeças a sair e a entrar nas escadas. Assim que começa a fraquejar lá vai sem pressa e recebe-o de novo em seu ninho. Era este o seu trabalho, até ao dia em que abriu uma cabeça e levou um murro. Agora usa os brinquedos no céu da sua cama, para fugir ao exterior, emprega-os no sono, mas o que lhe pulsa no peito e lhe incha a vontade é senhor do momento. Pousa a espada no chão, destapa-se e sai da cama, vai ter de ir à sala fumar. É usual, não lhe agrada, mas a verdade é que já nem olha para a água fria que grita nos telhados vizinhos. Veste-se com calma, a decisão por si só já é nicotina e já apaga metade da dor. Umas calças de ganga já gastas, um casaco azul, os ténis mais próximos e o cabelo em pé, carimbado pela almofada, formam o todo, que se gasta em sucessivos bocejos e sai do pequeno estúdio para o gotejar da cidade. A praceta onde se encosta o seu prédio deixa-se ouvir pelo assobiar gelado da ausência que trinca a face descoberta de Pedro e a salpica de chuva. Quase a chegar ao carro um telefone toca. Praça de táxis, vazia, o som que o acorda tantas das inconstantes noites, o som que o lembra do fumo que precisa, o som, ali tão perto. Toca. Toca. Toca. Pedro afasta-se do carro e caminha em direcção a ele, que não pára, e pára à sua frente. Atendo?

quinta-feira, 15 de março de 2007

Joana V

Parabéns a você.

- A quem? A mim? Como me cantas os parabéns se nem estou no dia em que nasci?
Joana nasceu no dia 29 de Fevereiro de 1980. Não gosta de se lembrar, que ninguém se lembra, ou que quando se lembram não é no certo, é naquele mesmo antes. És especial dizem estes, é só um dia antes, dizem os outros, só queria soprar as velas como qualquer um, não ser uma aberração do tempo, ter um buraquito no calendário.

Nesta data querida

Mas salta de quatro em quatro e de perna em perna, sorrateira. Esta meia noite vai ser diferente, corre curvada engolida nas sombras, com o machado caído cheirando a areia por vezes e reluzindo com a pouca luz que se vai descobrindo. É a segunda vez que tenta, e hoje sem duvida é um dia importante, o dia do meu não-aniversário. Saltou como da outra vez, um ballet ilegal onde as pernas trepam e circundam um gigantesco portão, de espadas voltadas para cima, a defender o rebordo e o íntimo do jardim.

Muitas felicidades

Sabe dos três guardas, e dos seus caminhos (dormiu com um ), sabe como chegar lá. Fica sempre admirada como o seu aniversário a perturba tanto, ainda mais que a mãe, é difícil chegar ao cerne da dúvida, o melhor é esquecer. Que se fodam os anos bissextos. E baralha-se numa revolta dentro de uma tentativa de paz. A sua mente é assim, uma confusão de fios, enrolados em nós de outros fios, vindos de longe, ensopados nas ideias de agora. E agora passa pelos elefantes, vê apenas os sinos, eles dormem, assim como os leões, na calma das sombras, ouve-se o esfregar das folhas e um ondular quente enrola os braços descobertos da infractora, sons ao longe, passadas rápidas e guinchos mais presentes fazem a sua cabeça rodar constantemente. Está perto. Passa pela aldeia dos macacos.

Muitos anos de vida

Sempre achou o jardim um recanto apetecível para qualquer dia com um ramo de sol, cheio de recantos, fechado mas aberto o quanto baste para se sentir o ar. Pára. Um macaco olha para ela, é o único no exterior, bem acordado, imóvel. Joana olha para ele, imóvel, pedindo misericórdia, estou tão perto, cala-te por favor, e tenta dar um passo. Crack! Fim da linha, o macaco guincha, e são dezenas, centenas, merda! Ouvem-se apitos, ela corre na direcção oposta do seu fim, não vai ser desta, embrulha-se no mato, numa saída rápida e menos vistosa que a da entrada, o peso do machado faz-se ouvir. Vê lanternas ao longe e ainda ouve apitos, foi por pouco!
Que se foda a Terra a volta do Sol.
Que se fodam os macacos.

(Palmas)

Joana IV

Sala de máscaras
Copia e imita as serpentinas que rodopiam, caídas de um braço no ar. Faz os passos das quintas-feiras no meio de mil, está feliz vestida de rosa, cabelo apanhado e corpo delgado, fino, escorreito. O Carnaval deixa esconder caras mas é a única altura em que Joana pode mostrar a sua. Cigarros, cigarrilhas, cigarritos passam por ela, seguidos de um charuto militar, gangsters, vacas, empregadas de limpeza, um grupo de prisioneiros, com as correntes nos pés, polícias, enfermeiras. Já tem papel colado, ao cabelo e à boca, cospe e joga o cigarro aos lábios, anda com olhar pesado nos braços caídos, não pode queimar o seu tesouro. Muitas máscaras de cigarro, erguidas em esponja e cartolina, uns a consumirem-se a eles próprios, é cómico. O som treme todo o cilindro, samba, previsível, todos o tentam dançar, e alguns à passagem de Joana esboçam um ballet patético na tentativa de simpatia por parte dela - Têm apenas um sorriso agoniado -Um enorme palco à volta do grande cinzeiro surge à medida que se arrasta no meio dos batuques para tentar subir, uma mulher suada, com enorme coroa, e nenhuma roupa faz-se ouvir, protegida por um grotesco corpo de baile. Em cada momento, dez movimentos injectados por uma energia anormal que a faz dar a volta ao meio e colocá-la em todo o lado. Estou quase a fazer anos, lembra-se quando vê uma sósia de branco, mais cicatrizada e mais curvada, a vida ali já passou e vai passar por ela também num dia que não se grava. As finas sapatilhas mostram na palma dos pés as beatas que se juntam num fino solo, um morto tapete semi-aceso, não te queimes Joana, não te queimes. Os martelos apitam-lhe os passos fortes na cabeça, lembrando-lhe onde está, difícil esquecer quando um dos sete anões a apalpa e a Branca de Neve lhe lambe a face de cima a baixo. É um deleite ver freiras a fumar, o capuchinho vermelho a bufar um rolo de fumo, aqui são todos lobos maus, à espreita...homens das cavernas com malmequeres, marinheiros com espanholas, e na porta da casa de banho o Fidel Castro com a Marilyn Monroe, as mãos já besuntam as coxas e deixam-se ir abaixo com a luz nervosa destes acessos. Ás vezes perde-se um pouco no seu próprio ritmo quase como se o facto de não ter rumo a injectasse de angústia, e esse liquido visceral a fizesse abrandar, mas são lufadas de ar que se vão e volta a ela. Mãos no balcão, a vender a sua altura.
- Caipirinha. Uma. Forte
- É sempre um bom disfarce – diz o sexo do lado.
- Quem te disse que eu estou disfarçada? – tocando com o queixo no ombro e voltando a olhar em frente.
- E quem te disse que eu estou a falar de ti?
(Envoltos os dois em seu própio fumo)
Sorri com estranha confiança, já te vi em algum lado.
- Sou a Joana.
- Encantado, sou o Ricardo.

quinta-feira, 1 de março de 2007

Diogo IV

Roda o tronco e toma por estrada o escuro corredor que se avizinha. Cada porta que se avança é uma questão que transpira na cara ensanguentada de Diogo, cheira os ténues candeeiros e a alcatifa verde que se desenrola até ao fim. Imagina o canudo ainda enrolado, rodando e forrando o chão à medida que passa, a cada passada, estrela de cinema. Todas as portas têm números, um lado ímpar e um lado par, frente a frente. Não se esquece do seu lado de ontem à noite, que não se lembra. Ainda treme numa gravidade mais pesada e incomodativa, sabe que é mais lento, criança a descobrir uma película que nunca viu. Os olhos desdobram-se nas direcções possíveis em repetidas incursões de reconhecimento, nem um sinal amigo da memória, essa amiga de outros dias que se apaga sem avisar. Mas como? Será que me esqueci ou que nunca me lembrei? Nunca mais sossega o andar porque o túnel é realmente comprido, ouve gemer uma porta atrás de si, olha por cima com sossego. Uns caracóis castanhos e uma mochila vermelha passam por si a correr. Outra porta, agora a frente, uma barriga destapada e uns óculos gordurosos repelem toda a figura de Diogo. Não olhes, não olhes. Pára uns dez segundos de ameaça mas depois segue o seu caminho. As paredes escorrem um creme, sujas quando ligam o tecto, esse sim cinzento. O ar é uma corrente de ar que se envolve num abafar de pouca luz e ácaros, assente num perfume consumido de edifício velho. Continua com um sapato à frente do outro, carne picada e infernizada por uma placa de zinco inexistente que corta Diogo ao meio. O travo metalizado vai desaparecendo, na sopa de paladares fortes que reina na sua boca, à medida que vai mastigando em seco, seco. As escadas, aparecem e desce, sem olhar para os outros andares, comendo os degraus, ouvindo as televisões e os rádios ligados no 4, no 3, no 2, no 1 e por fim aterra numa nuvem de luz que se destaca do exterior, rompendo a gigante porta envidraçada que tranca o hall. Azulejos num jogo de quadrados forram tudo o resto. Sai e respira tão fundo que pensa estoirar. Não bebo mais. E na bebida liga-se à terra, seguindo um carreiro, migalhas de ideias, espalhadas que vai apanhando, e sabe que fuma, pois sabe. E luz, estive na sala!
No momento em que a imagem da sala lhe é clara, um bando de flamingos passa no meio da estrada, voando mesmo à sua frente.