terça-feira, 20 de março de 2007

Pedro V

..............................................................................................Fumar

Abre os olhos. Imóvel na cama grava o escuro, tenta desenhar algo no tecto, mas não há papel. Apenas uma nuvem negra que o tenta levar de volta para um sonho recente do qual não se lembra. Tenta não sentir aquilo que o acordou, e que se começa a espalhar, formigueiro nos dedos, tenta-se afastar e fugir para outros cantos. Só o consome mais, só fica mais perto. Começam a pairar os helicópteros. Há quem queira carneiros, ou outro qualquer animal que salte uma vedação sendo constantemente contado, Pedro limita-se a remexer no já feito, e à sua frente, ele mesmo, no cimo de umas escadas rolantes. Está com um ar mais jovem, a sua roupa ainda é passada a ferro, já se curva, mas ainda não tem o olhar pisado de agora. Veste um laranja ridículo, que transcreve a submissão a qualquer e estúpida tarefa por umas notas. Na mão esquerda um helicóptero preto com uma enorme listra laranja, na outra, o cordel que cria o voo, pronto a ser puxado, na sua cabeça arrancado e queimado. Levanta a aeronave e num esticão ela celebra um decadente e forçado voar, por cima das cabeças a sair e a entrar nas escadas. Assim que começa a fraquejar lá vai sem pressa e recebe-o de novo em seu ninho. Era este o seu trabalho, até ao dia em que abriu uma cabeça e levou um murro. Agora usa os brinquedos no céu da sua cama, para fugir ao exterior, emprega-os no sono, mas o que lhe pulsa no peito e lhe incha a vontade é senhor do momento. Pousa a espada no chão, destapa-se e sai da cama, vai ter de ir à sala fumar. É usual, não lhe agrada, mas a verdade é que já nem olha para a água fria que grita nos telhados vizinhos. Veste-se com calma, a decisão por si só já é nicotina e já apaga metade da dor. Umas calças de ganga já gastas, um casaco azul, os ténis mais próximos e o cabelo em pé, carimbado pela almofada, formam o todo, que se gasta em sucessivos bocejos e sai do pequeno estúdio para o gotejar da cidade. A praceta onde se encosta o seu prédio deixa-se ouvir pelo assobiar gelado da ausência que trinca a face descoberta de Pedro e a salpica de chuva. Quase a chegar ao carro um telefone toca. Praça de táxis, vazia, o som que o acorda tantas das inconstantes noites, o som que o lembra do fumo que precisa, o som, ali tão perto. Toca. Toca. Toca. Pedro afasta-se do carro e caminha em direcção a ele, que não pára, e pára à sua frente. Atendo?

3 comentários:

Anónimo disse...

sabes o que ainda consegue ser mais giro do que este texto?? sim adivinhaste micas!!! boa! é o teu ídolo, rodrigo santoro....

Miguel Ferreira disse...

O Rodrigo Santoro já faleceu

Anónimo disse...

quem é o rodrigo santoro?