quinta-feira, 5 de abril de 2007

João V

- Tenho dois momentos em que percebo que o tempo realmente anda. Um é a mudança da hora. Acordo às 10 que já são 11, sem saber da troca mas cedo o cheiro da luz me diz algo estranho, uma sensação de falsa realidade, até falhar um encontro ou ver nas notícias, ou falhar as notícias porque já mudou - boceja com garra afogando os olhos em água que limpa sem pressa com a palma da mão, uma de cada vez. As narinas dilatam e soltam duas correntes de fumo que choca na mesa e se dispersa como uma onda em maré baixa, deliciosamente e com a lentidão necessária que se mastiga a costa.
- Nunca te aconteceu?Parece que o dia não encaixa em ti...
- E o outro?-nunca teve paciência para o escutar e muitas das vezes deixa-se andar sem engolir o discurso alheio. Hoje está com alguma atenção, a suficiente para contra argumentar, ou simplesmente perguntar.
- O outro?
- Sim o outro momento, não disseste que eram dois.
- O outro é quando sobe o preço da bica. Todos os dias me movo a saber quanto vou expulsar da minha carteira gasta e suja, até saber que todos os dias é aquela moeda, deixamos de falar e simplesmente vestimos o hábito como em todos os outros nadas. Até ao minuto em que quase envergonhado e triste por me dar tal notícia o empregado magriço me diz: são mais 5 cêntimos, é que já subiu...Com cara de desculpa, não me peças desculpa homem, não tens culpa.
João vai soltando sorrisos de fumo à medida que a revolução dos dias avança na boca do Carlos. Vive sentado na secretária ao lado da sua, perpendicular, desenhando 90º. Espreitam-se por cima dos monitores quando precisam do contacto visual para endurecer as palavra, mas a maioria das horas são teclas a bater. Nunca conheceu ninguém tão teórico e mentiroso, ninguém com tantas mentiras, e não são aldrabices comuns, são verdadeiras histórias construídas de raíz, e com tantos mas tantos promenores que por vezes João pensa serem verdades. Diz que foi ele que inventou o tipo de letra Arial e também foi muito importante na criação do Tahoma. Já caiu dum 8º andar. Já foi mordido por uma piranha no joelho direito. Às vezes João ainda tenta mas ele molda alibis noutros alibis e torna-se tão forte e complexa a mentira que acaba por desistir.
-Esta empregada é nova não é?
-Nunca reparaste?
-No quê?
Como é possível nunca teres reparado?Não vou dizer, agora pareço eu a contar uma mentira. Há verdades estranhas.
-Nada esquece. Sim é nova.Vamos?
Apagam-se e levantam-se encaixando as respectivas cadeiras na mesa e circundando o cilindro envidraçado. Descem para o parque. Lembram-se do sítio. Longe ou menos perto vão os dias em que se perdiam. Num destes almoços tiveram de pedir ao segurança para dar uma volta na moto-quatro à descoberta do pequeno veículo escondido entre uma enorme carrinha amarela e um pilar de cimento branco e vermelho. Entram no pequeno Fiat Punto, branco e só com o espelho do lado do condutor, à direita de João um enorme buraco de onde saem fios enrugados e coloridos.
-Quando tiras a carta?
-Não vou tirar.
-Mas dava-te jeito.
-Chego a todo o lado - arrogantemente falando e expressando o enjoo com que aborda este tema já debatido em viagens anteriores.
-Mas tens medo de conduzir?
-Não tenho medo, nunca conduzi, é uma opção, só isso.- tentado afirmar o ponto final.
-Sabes quem vi hoje?- conseguiu - no trânsito mesmo ao meu lado?
-Diz lá..
-O Antonio Banderas.

2 comentários:

João Gaspar disse...

um dia levo-te ao piso por cima do meu local de trabalho. a bica é a 30 cêntimos. pode ser que te passe esse trauma.

João Gaspar disse...

quer dizer, temos duas semanas.