Gostas de ouvir a vida dos outros?
Não. Eu sou a vida dos outros.
Não. Eu sou a vida dos outros.
- Levas o livro?
Joana acusa a presença do casal.Está de pé, pescoço torcido, a ler os titulos direitos das obras que se seguram umas às outras na prateleira. Por entre o murmurinho das páginas e os sussuros da tinta, ouve o diálogo fresco, acabado de nascer nas suas costas. Ele forte e desarranjado folheia um livro, ela fina em tons pastel senta-se à sua frente. Ele não olha para ela, ela olha para ele.
- Levas o livro?
Ele não a ouve, ela fala com ele. Joana deixa de olhar, passa a representar a procura e a abraçar o seu estatuto de voyeur. É tão bom trincar vidas alheias.
- Estás a ler o livro todo?
Surdo folheia mais e uma e outra página.
- Já sei como é a tua cara - o seu vestido grosso, os seus óculos carregados e sua face redonda tornam-na num ser alienado daquela realidade, fechada num monólogo - Tens barba, sobrancelhas grossas, usas sempre a mesma roupa - pausa e discursa monotonamente, divagando sem tom- só tens dois pares de calças.
Vertical, voltada para os imensos volumes cheiro semi-novo, finge ler com atenção um fino livro de capa vermelha, olhando por entre as deixas para a dupla sentada mesmo à sua esquerda. Ele lá prossegue a leitura na sua bolha, Joana imagina os castelos ou as ruelas escuras por onde ele anda, de espada ou pistola, talvez à chuva.
- Já não compras calças há quanto tempo? Os teus sapatos estão gastos.
Nem um musculo se move.
- Estás a ler o livro todo para ver se é bom e só depois o levas é?
Joana arruma o livro. Já se sente satisfeita. Aos poucos, larga os outros, ainda ouvindo.
- Não és nada metrossexual, não cuidas de ti. É a tua mãe que tem de fazer tudo...
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