sábado, 16 de dezembro de 2006

João II

Nem diz nada. Está apenas diante do balcão cinzento. Olha para ela. Ela, de avental azul, cansada e com o seu olho trémulo sorri sem alegria e vira-se. Mecanicamente tira o manipulo da máquina , bate com força em pancadas que ecoam que nem sinos exaustos e sai o café bebido por um errante qualquer. Sem se ver , enche de café novo e volta para a máquina, para o uso. Seu indicador pintado de verniz aborrecido carrega sem lembrar no botão que em tempos tinha pintada uma chávena. João nem se recorda em que altura saltou a linguagem, em que dia passou a estar incrustado neste mármore sujo e usado. Sinto-me em casa? O café desliza para si sem amor e a empregada ( Rita ou Mónica? ) mostra de novo seus dentes manchados de baton e fica ali. Vai uma moeda vem outra. Os dedos tocam-se. Sempre se tocaram no acto de troca. Sai um obrigado fora de prazo e João sai a pensar nos dentes. Ontem trocou as lâmpadas da casa de banho. Mais luz que espelha o seu oposto. Hoje de manhã descobriu seus dentes manchados, amarelos. Nunca tinha visto, descobriu-se durante escovagens repetitivas sem efeito, sentia-se enojado. Sempre gostou de estar limpo ou de se sentir limpo. E ter dentes amarelos era um muro de cimento que lhe deturpava a vista para o seu grande quintal florido a que chamava de vida. Tenho de ir ao dentista. Se tiver dinheiro. Mas tenho de ir. O seu casaco negro cobre-o de alto a cima rimando com a ondulação pastosa que lhe cobre a cabeça, puxada para trás, desnudando o brinco pendurado e recortando grandes entradas. A manhã irrompeu escura mas no andar de cima , ou como lhe chamam os toscos no “anel do café”, a iluminação de Natal cose e preenche todo e qualquer buraco de transparência, que em dias comuns se eleva ao circulo central. Um emaranhado de amarelos e vermelhos cintilantes vizinha a mesa onde João se senta. Está habituado a deliciar-se com as pequenas baratas que andam às voltas, fumando e pensado. Porque penso tanto quando fumo? Hoje apenas um BOAS FESTAS do avesso nos seus olhos e café arrefecendo à sua frente. Está a arrefecer, já se sentem os ossos. E eu, ainda arrefeço? Sacode o açúcar e entorna-o para o pouco café que preenche a sua chávena borrada. Bebe num gesto. Tinha chegado um pouco mais tarde por isso o cigarro número um tinha de ser amado em andamento. Está atrasado, acende, engole o fumo em passas seguidas seguindo os seus passos, alternados. As botas escuras calcam o chão e o som dos dias fica gravado à sua passagem. Contorna o circulo, um café a seguir ao outro, todos velhos. Desce a escada para o centro da sala e dá de caras com louco de pijama.
- Dá-me um cigarro
- Desaparece daqui – nem olha para ele. Odeia os loucos. Odeia as pessoas.
Engana-se na saída e volta atrás – Já disse para desapareceres!- Apaga o cigarro no chão e acende outro. Dum lado ao outro, passando pelo meio, pelo grande cinzeiro. Continua. Entra daqui a nada. Pensa nos dentes. Pensa como é bom ninguém o ver lá de cima, como é bom ninguém o chamar de barata tonta.

Sem comentários: