sábado, 23 de dezembro de 2006

Pedro II


I know she told you
Honey I know she told you that she loved you

Faltam vinte minutos, ou menos. Despe à pressa a roupa do trabalho, desaperta com força o colarinho da camisa, sente o botão áspero, desaperta com força. Já tirou o colete, tira as calças lisas e verdes, é tudo verde, menos a sua esperança, essa já diluiu, descorou. Tira o sagrado cabide agora com vestes para depois, depois das viagens, da ida e volta, dos pilares cinzentos e dos tectos mal acabados, do chão mascarrado de pneu, de óleo, de parar e ficar. Ou de ficar e arrancar. Cada vez com mais pressa luta com a camisa, tenta fazer tudo ao mesmo tempo, e ali à espera no cacifo número 4 está o outro. Não se importa de trabalhar no fim de ano, tem sempre uma hora para subir à superfície e beber o champanhe amargo e as passas azedas, dos meses ausentes do ano que se enterra. Tirada em raiva, a camisa cai sobre o banco e descansa, Pedro amaina. Olha-se nu ao espelho oval que se encontra na parede do fundo. Metes-me dó. Anima-te que é fim de ano!Tudo vai melhorar! Engana-se em voz muda e toma o cabide de uma vez, agora delicado e carinhoso. Forra as pernas de ganga (são as suas calças preferidas), cobre o tronco com uma malha azul escura e conclui.Cabelo negro, olhos encavados, cara ossuda, barba indefinida, tudo o torna profundo, tudo assusta mas tudo embeleza, sem grupo nem definição. As mãos correm a cara, o corpo, em ínfimos toques e retoques. – Vamos lá. – torna sonoro agora o seu animo mentiroso. Faltam dez minutos, ou menos. Sai que nem louco, num passo já à frente, uma sapatilha, esquerda direita, acelera, corre. Vai passando as letras, que têm números, que por sua vez têm cores. Está cheio o parque, o que é normal, todos querem festejar e fumar, uma relação mutua entre as duas acções, que automaticamente torna o local de trabalho de Pedro concorrido. Sente-se perro, as articulações já não fluem, sente que é uma máquina enferrujada. Chega à escadaria, balança até ao topo, até ao último corredor, que se povoa de uma luz intermitente, quase extinta. Pára um breve instante e empurra a porta com força, quase como que em câmara lenta saboreando cada novo vislumbrar inicial da sala. Está cheia como nunca viu, uma massa humana estranhamente parada que solta um burburinho infernal de quase alguma coisa. Faltam seis minutos, ou menos. O andar de cima continua com as iluminações de natal coladas nos vidros, não consegue ver ninguém, e cá em baixo olha mas também não vê. Procura alguma memória nos cigarros, cumprimenta tanta gente mas não conhece ninguém. Fura no meio da multidão, esbracejando e empurrando, todas as luzes se levantam e reflectem um brilho nunca antes dado, entrelaçado nos fios de fumo que sobem de todas as voltas e de todos os cantos. Fura mais, está no centro, no grande cinzeiro, olha para a areia, sente-se quente ali no meio, a luz, a respiração, mas acima de tudo sente-se só. Nunca antes esteve tão isolado de todos. Só e só neste momento repara na música, na música alta que se tenta sobrepor aos milhares de ecos, tenta furar a barreira. Faltam dois minutos e Pedro continua a andar, até à parede mais próxima, até um sentar. Vê uma cadeira livre. Quem tenta cantar é Janis Joplin. Está quase. Vou-me sentar e ver o ano nascer daqui. Desiste de procurar, baixa as armas e olha para o lado, vê uma rapariga de vestido negro, cabelo apanhado, envolvida nos reflexos com que a sala brinca e remexida pelos sons, só definida por estar mesmo ali. Tem os olhos rasgados e lábios finos, está a pensar em algo, enquanto fuma, parece esquecida dos anos. Olha para Pedro enquanto lança o fumo inclinando o lábio inferior ligeiramente para a frente.
- Gostas da música?
- Deprimente. Mas a mim serve-me a carapuça – diz acendendo também um cigarro.
Ela sorri. E solta mais fumo.
- Eu gosto. Solta-me o espírito. Será que alguém está a ouvi-la sem sermos nós?Ou teremos um concerto privativo?
É Pedro quem sorri acanhado. Dois corpos desistidos e vencidos lado, juntos no som de Cry Baby.Faltam 10 segundos.Todas as cadeiras se levantam, Pedro não é excepção.Ela acompanha-o na contagem. Ela esganiça cada vez mais, cada vez mais poderosa à medida que se aproxima o refrão, o novo ano, Who’ll take all your pain/ Honey, your heartache, too ?/ And if you need me, you know/ That I’ll always be around if you ever want me,3, 2, Come on and cry,1, cry baby, cry baby, cry baby!E neve cai do cimo, em tons de papel, ela olha para ele e no meio dos gritos diz sussurrando – Feliz Ano Novo! – Pedro apaga o cigarro, sente que só os dois sobrevivem ao caos. Abraça-a com força como se fosse o seu último gesto, os corpos repletos de cinza e neve, juntos, balanceando ao som do fim. Troca-se um segredo – Maria.

And that’ll be the end of the road, babe
I know you got more tears to share, babe
So come on, come on, come on, come on, come on
And cry, cry baby, cry baby, cry baby.

Sem comentários: