sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Maria II

Tenho de fumar. Não encontro lugar, tanta gente, tantos carros e eu que tenho de fumar. A vida parece pulsar nesta ânsia enevoada que circunda. Sempre achei este parque enorme mas agora que desejo parar, parece-me um buraco minúsculo. O rádio já não apanha estação nenhuma e só agora reparo na minha banda sonora, estática. Desligo com raiva, viro para esquerda na letra Y, aqui tem de haver. Às vezes conto e analiso, vagueio por aqui a pé, quando está deserto de som, gosto de ir descobrindo o círculo tão bem enfeitado, mas hoje não. Encalço os números, e tento beber de todos os lados, curvo-me sobre o volante e o carro abranda cada vez mais, desliza apenas. Vejo finalmente uma luz de marcha-atrás, um futuro espaço para mim. Pisca para a direita com exactidão, os meus dedos tomam conta do circo e batem involuntariamente no volante, rápido homem, nunca antes um carro a recuar me pareceu tão monótono. Olho para todos os lados para ver se nenhum outro me rouba o achado. Já está, rodo o pesado volante, as vezes correctas até enfiar o carro no apertado buraco, entre uma carrinha vermelha e um carro cinzento prata. Y-23-rosa. Já está, já está, abro a porta, e esqueço a pressa porque nunca esqueço de ser senhora. Um salto toca no gelado pavimento, o outro vem por acréscimo, tapo as minhas pernas e dou um último toque aos lábios no espelho do meu lado. Acabou o tormento, chegou a hora, fecho o carro e da minha pequena bolsa tiro o cigarro, finalmente a água, o oásis depois de palmilhar um penoso deserto. Parece que tudo volta ao estado normal, parece que estava a subir, a exceder a temperatura e que o termómetro rebentaria se eu não arrefecesse, com um cigarro. O estado está normal, o meu estado médio de pessoa mediana. Olho para o meu carro ferido, nas portas, amassado e dorido, as rodas depenadas, e no vidro uma pequena lágrima que vai rachando mais todos os dias. Antes ainda deixava de dormir, hoje já não me incomoda, até acho característico, mais um conceito de mim. Passa nas minhas costas um som, uma moto quatro, quando me viro apanho apenas as costas de alguém verde, curvado, a passo lento e desagradado, nem olha para os carros, nem olha para trás. Não te vi o rosto. Adeus. Olho para o relógio, já no filtro, falta uma hora mas está quase na hora. Caminho e deixo os ecos, dos saltos, que se misturam com outros passos, do muito povo que passeia a meu lado. O ar habita pesado e suspeito de fumo. Já estou na porta, sigo a manada e passo sem tocar em nada, e o ruído de milhares lança-me ao chão, não vejo ninguém, estou apertada e tento passar levantando o outro cigarro no ar. A antiga iluminação de natal é luz do meu caminho, vou lá a cima, tentar respirar. Deixam sempre estes velhos BOAS FESTAS, para nos lembrarmos por mais um mês ou dois que já passou uma época, restos deixados num prato que apodrecem à vista de todos embrulhados na prata das memórias. Detesto. Aqui em cima há mais espaço, vou ao balcão e peço vodka, mete o sumo que quiseres. Já passa da hora, circulo de copo e cigarro, vou dar a volta. Neste andar há ainda mais luz, ouvem-se garrafas a partir e o chão já se quer pegajoso. Finalmente encontro-os, lá está a minha irmã, igual a mim mas sempre pareceu mais viva. Dou-lhe um beijo e cumprimento o namorado e resto do grupo, ela está tão viva. Dizem-se aquelas repetições enfadonhas, que somos iguais, gémeas, toda a vida a ouvir a mesma canção, dá-me vómitos. São três casais e eu, mais negra e mais perdida. Vou ao balcão com a Inês. Peço mais vodka, ela não bebe.
- Estás linda
- Tu também Maria. Pensei que não vinhas.
- Vim te ver. Alguém tem de olhar por ti – e sorrio, ela retribui. Sempre foste tão doce para mim e eu sempre te desprezei tanto, sempre fui uma ilha gelada e fechada. Mas não consigo, há sempre outras coisas, serás sempre a Inês, aquela igual a mim mas em tudo superior. Deixas-me zangada, estares bonita, estares aqui, fazeres covinhas quando sorris e eu não. Tento a paz mas não consigo.
- Vamos ter com eles. Olha o Paulo tem um amigo que vem aí ter, pensei logo em ti.
-Oh Inês por favor – detesto-te.
Chegamos ao grupo de novo, mais vodka e mais um cigarro. Contam-se piadas, trocam-se gestos, falo muito de algo que não me interessa. Cada vez mais estão longe, não vos conheço, não consigo gostar de vocês, felizes e harmoniosos. Já nem os vejo, estou só em silêncio. Digo que vou a casa de banho e fujo dali. Entro na casa de banho, e acalmo a cara com água gelada, ouço vómitos ao fundo, tenho de beber mais. Quero gritar de fúria mas não consigo, nem a merda de uma lágrima para o exorcismo. Saio e desço, não volto lá, sobem e descem, embato num ramo de rosas, desculpa digo. Chego ao cerne da sala, faltam dez minutos. Sento-me numa cadeira qualquer, só vejo fumo, fumo mais um e espero. Vou passar aqui e digo que me perdi. Desisto então, és tu quem mandas. Reparo na música que acaba, é difícil ouvir, vem aí outra, Janis Joplin a implorar que chore. Não dá. Deixo os acordes escritos na pauta do fumo, e olho sem nome nem fé. Só então reparo que alguém se sentou ao meu lado, é alto, barba por fazer, olhos escondidos e perdido, como eu. E se lhe perguntar alguma coisa? Parece tão meu. Olho serena, lanço um comboio de fumo e solto palavras rendidas à beira do fim.

1 comentário:

Dive disse...

Obrigado pelo teu comment, fiquei a conhecer o teu espaço, e vou cá voltar.

"Isso é muito fixe." :D

Um abraço