sábado, 6 de janeiro de 2007

Joana II

Já doem algumas partes do seu estreito corpo e a cabeça já grita alguma febre, será? Está coberta por um casaco de penas que a enrola do pescoço aos tornozelos, e encosta o queixo ao fecho de borracha que desce e sobe, numa vida sem mais nada. Endireita-se um pouco depois de quase escorregar na cadeira, de quase se esquecer e volta a ela. Abre o maço. Um cigarro esquecido sorri para ela, o seu último prazer antes de amachucar o cartão e plástico num nó de lixo fumado, voa para o cesto, e ali fica. Endireita-se mais na cadeira, sente-se torta e escorreita, o facto de ter febre, ou poder ter, não ajuda e torna-a difícil, sem tom. Levanta-se e deixa ver um pouco de rosa, por debaixo do negro do casaco, ajeita-se e esconde o que tem dentro, vestido e dentro dela mesma. Hoje é um dia mau para Joana, chove desde que respira, o trabalho enforca-a nas pipocas e nas carpetes vermelhas, nas colas de lata ou de copo, no chapéu, nas famílias, nos inícios que pode ver mas depois têm de sair e cortar mais bilhetes e sorrir. Não há nada de mais cruel para Joana do que ter de sorrir, quando não quer. E queria ver como acaba. Será que ele morre. Não pode ver, isso mata-a . Isso e o que traz vestido por baixo. Está à porta, só fumo amanhã, só fumo amanhã, compro já, fumo já, ou deixo para amanhã? Fica num fuma não fuma, vai e não fuma, fica, compra e fuma. Nem sabe para quê as duvidas, que são as mesmas desde que jogou um cigarro à boca num dia cinzento de criancice, para quê as duas hipóteses. Sobe as escadas, pede à Mónica um maço de cigarros, fuma dois às passadas coladas, de pressa, desce as escadas. E sai com fumo na boca, sempre a provocar. Abotoa-se ainda mais e esconde-se mais uns centímetros, hoje a sala metia dó, nem olhou bem para ela, nem saboreou como de costume, deviam estar umas cem pessoas, nem tanto, velhos, só velhos. É sempre este início de Outono, este escuro sem força, este lavar das folhas deixa um verde podre em todo o lado. Sem lembrar a sala, olha para a rua, os frouxas luzes amarelas mostram-lhe os caminho, semeado com caixotes, papel, muito papel, que enevoa o negro duma noite fresca quase gelada. As redes que desenhavam a antiga zona industrial estão rasgadas, avisos de perigo rangem, pendurados por um parafuso caridoso, enferrujado, e abandonado. Não anda ninguém, só Joana, com umas negras sapatilhas que a mãe lhe deu Vais ser o mais belo dos cisnes princesa, enquanto lhe punha o cabelo atrás da orelha. Oh mãe porque nunca aceitaste? Porque nunca compreendeste que não sou um cisne? São sempre as mesmas memórias, às mesmas horas, que se embrulham num dejá vu, no segundo em que olha para trás e vê a grandiosidade da sala, parece um gigante moinho, um monstruoso cilindro que caiu no nada, que já se abandonara, longe de tudo e de todos. Está quase a chegar, mais duas luzes amarelas e chega. Chegou e parou. Olha para o candeeiro branco, que nasceu forte no meio de toda aquela debilidade, um tesouro no meio na penumbra. Olha para um lado e para o outro, não está ninguém, nunca está ninguém, uma vez uns miúdos viram-na mas timidamente fugiram. Do bolso do casaco sai uma fita rosa, e os polegares perfeitos esticam-na e elevam-na para trás, uma mão apanha o cabelo húmido do ar (ouve o gotejar de um cano) e ata-o com sossego. O casaco desliza e cai inanimado no chão. E nasce uma flor, brota uma fada, o outro lado, aquele mais leve. Voa até ao centro, até a luz lhe dar um palco, e reluzir de cor o seu maiô e a sua saia, a sua fita, a sua graça. Ouve-se então a música, aos poucos, estica os braços, que sobem e descem em círculos, levantando a direita e depois a esquerda, insinuando o corpo, e cabeça levanta – salta – salta – esticando e mantendo a verticalidade até um fim em que roda de novo os braços e pára, acariciando o tempo, uma duas vezes. Joana sorri. Dançava esta parte no grupo do canto, eram seis grupos de quatro, que se cruzavam, sem se tocar, de um lado para o outro. Agora nada sozinha no lago dos cisnes. Nunca foi perfeita, sempre se sentiu a mais, naquela harmonia. E estica o braço despedindo-se da saudade. A música muda, é o baile, sem par deixando cair os braços e tudo o resto, esticando as mãos para cima, e saltitando de nota em nota. Imagina a sala, o fumo, os fumadores dançando nos bafos, saltando nos cinzeiros, apagam-se e acendem-se isqueiros, ela ri, solta gargalhadas enquanto passa de uns braços para outros, trocando o par, o cigarro e apaga, volta ao negro. Deixa de rir, decide chorar. Vem aqui todas as quintas, umas vezes chora, outras não. Chora por Odette, chora por não gostar de cisnes, por amar os flamingos, chora do cinema, mas é sempre aquela dança que sai. E assim se fecha a rua, entre um gotejar, um assobiar, um ranger que assusta, um frio que se apodera, e lá ao fundo, bem ao fundo um triste flamingo que dança, que dança num lago de cisnes.

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