quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

João III

Abre a porta devagar varrendo com a vista o negro que valsa na entrada, de mão dada com um pequeno ranger, lembrando o antigamente. Pressiona o interruptor e sonha com o dia em que baterá palmas para se fazer luz. Ridículo. Tira o casaco de ganga e solta-o no sofá maior, não ouve nada, estranho. A sala cheira a claustrofobia, falta luz ali, a televisão adormecida, os sofás encardidos. – Tio!Está aí em cima? – grita para as escadas sem cimo, avizinhando o sucedido. Sobe, Tio, tio! Abre ambos os quartos, naquele, cama feita, guarda-roupa aberto, sem roupa. Foda-se. Desce sem pressa, ele não vai fugir. Do frigorifico sai um pacote de leite bebido freneticamente, fugindo pelo canto do lábio. Pega no casaco e sai de casa, a porta fecha poucos minutos depois de se ter aberto e geme de novo. Deixa para trás uma casa pequena, colada a tantas outras rasteiras que se enfaixam rua fora, e já é noite. Anda com passos certos até ao autocarro. Sobe para aquele limbo, e deixa-se estar numa das cadeiras almofadadas lá do fundo. Ouve o ar das portas a fechar e balança para a frente, já não é novo neste caminho. Todos os meses o seu tio António foge de casa, uma duas vezes, guarda tudo é que é seu, põe a sua camisa mais bonita, em tons de rosa, e sai porta fora (aquela que range). A primeira vez foi o fim do mundo para João, a única pessoa que ele quer bem tinha desaparecido, abriu a cidade, correu as montas, os passeios, suou, foi à polícia, até que alguém viu um velho, numa paragem de autocarro, onde já lá não passa nada nem ninguém, sozinho há horas, com as malas nos pés. Isto foi a primeira, as outras foi ver e correr para o céu, já sabia onde. Como agora que balança neste pára arranca, nesta apatia que se vive nas cadeiras e no motorista, robô que se encontra ao fundo rodando o enorme volante a passo lento, a passo dos dias que morrem aqui dentro com o mundo a viver lá fora. Está a chegar, carrega no botão de aviso e levanta-se percorrendo o vazio até à porta. Algum frio cose o corpo grande de João, em tempos atleta, hoje apenas cansado. Sublinha-se por uns quantos becos e ruelas, sem olhar para ninguém, até chegar ao velho repouso. A paragem é vulgar, um banco, um tecto, vidros laterais pintados com riscos urbanos, e uma placa de metal a indicar o 78.
– Então tio, outra vez...vamos para casa, já lhe disse que não passa aqui nem o 78 nem autocarro nenhum, venha lá comigo!
- Deixa-me em paz Ricardo, não te metas na minha vida – diz com os olhos molhados e o pouco cabelo bem penteado. Tem um casaco escuro fazendo par com as calças, da camisa rosa apenas o colarinho, as mãos no colo agarrando na carteira e os pés para trás, cruzados. Sempre chamou João de Ricardo. Nunca o corrigiu, nunca disse a verdade, e neste momento é tarde. O meu nome é João! Engoliu estas palavras e depois arrastou-se, deixou-se ser Ricardo.
- Nem lhe vou perguntar o que faz aqui...
- Se perguntares eu não respondo, deixa-me viver a minha vida, por favor – as mãos enrugadas tremem e os olhos fogem do sobrinho.
João não diz mais nada, senta-se ao lado do tio, olhando para caixote do lixo verde e como fundo um vazio de terra sem nome, lá longe a sala, pequenina dali. Deita-se para o lado, até adormecer, fica ali até o tio o chamar, até a triste e só loucura findar.

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