terça-feira, 5 de dezembro de 2006

João

João entra com o seu andar dançante na Sala. Numa mão um ramo de rosas, na outra a solidão cravada num isqueiro cinzento escuro que solta rasgos de brilho a cada balanço dos passos. A cada entrada que faz lembra-se da primeira vez que cheirou toda aquela onda de fumo, a primeira vez que pisou aqueles azulejos em tempos azuis, agora apenas sujos, como tudo. De tudo lembra-se bem, o primeiro cigarro acendido, as primeiras palavras dirigidas ao fumador do lado, o primeiro circulo escrito no chão, o primeiro café...todos os primeiros até hoje, o primeiro dia da semana. O que o trás aqui hoje é mais que fumo inalado, é mais que tosse, é mais que matar algo que nos mata na ansia de não poder, é mais...é apenas um encontro. Daqueles que se marcam sem hora e sem toque, a ver no que dá. Não o romântico, o outro. Tinha fome e as pernas doiam-lhe. Tinha percorrido mais do que o habitual para ir roubar o ramo ao cemitério. Saiu duas estações antes e percorreu umas ruas entrelaçadas e escuras até chegar lá. Faz sempre isto. Neste encontro a campa dizia: " Contigo fui exactamente aquilo que sempre quis ser. Com amor."Não lê os nomes, apenas as declarações e promessas, a dor. Não quer especificar, não que lhe custe, é apenas uma opção. "Em que altura deixei de sentir?" sussurra para si "Em que altura passei apenas a existir?". Sabe que não é uma boa pessoa, nunca foi. Senta-se na fila combinada. A Sala encontra-se especialmente cheia para esta hora da noite. Encosta-se e acende um cigarro, os pulmoes enchem, e solta um leve gemido de prazer envolto em fumo que lhe foge pela boca. Toda a enorme estrutura circular sempre o fascinou. Dali vê tudo. Todos os lugares ocupados. Todos os lugares vazios. Todos os lugares ontem ocupados e hoje vazios. Põe o ramo na cadeira do lado e conforma-se na cadeira. Fuma mais um cigarro e espera, como se ali estivesse a sua campa, limpa, sem dedicatória, sem alma.

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