Estava à janela. Corriam gotas reflectindo as montras distorcidas e enevoadas pelo consumo. A cor era de um cinzento azulado, de dia acabado, de horas metalizadas e pensamentos vagos. Vejo-me no reflexo do vidro a olhar para longe, mas a ter de olhar para um sítio que não entendo. Onde estou? Olho para o lado, uma mãe com uma criança ao colo que chora, que grita por mais. Como não ouvia nada? A seu lado está outra mãe, e outra, e outra. Imaculadas e sofridas a abanar os seus rebentos, dizendo em surdina para se calarem. Levanto-me e todo o autocarro chora e se povoa de branco. Passo e entro no corredor do meio, cada vez mais rápido a furar as ruas, danço de ferro em ferro e olho para elas que nem me sentem. Vejo a condutora lá ao fundo,noiva de alguém, soltando leves nuvens de fumo, tento agarrar-me e dar consistência as pernas. Só então vejo que estou também de branco, vestido comprido, com um decote sublime e uns sapatos de salto alto a condizer, em pele. Toco no cabelo, está arranjado e apanhado com uns enfeites que apalpo mas não decifro. Lá de fora vem o chiar do travões e o meu leve corpo é arrastado até ao fundo, sinto a cara a rasgar o chão e a cabeça a estalar. Debruço-me quando pára e ninguém sentiu, mas já ninguém chora. Um trilho de sangue á minha passagem marca a marcha silenciosa até à frente. O meu vestido pinta-se de vermelho e sinto a cara molhada de dor, já não estou bonita. Toco no ombro da condutora e ela vira-se. Inês?
– Tu sais aqui Maria.
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